Desde 31 de março passado, centenas de franceses, às vezes, milhares, reúnem-se diariamente na Praça da República, no norte de Paris, para conversar e discutir a situação política do país, seus problemas, o que e como fazer para resolvê-los e rumos para o futuro. Como dizem os participantes, trata-se de ocupar o espaço público, transformá-lo num fórum, como se fora uma ágora moderna, onde todos são bem-vindos. A polícia os proibiu de se sentar. Pois seja, ficaram em pé.
E em pé vão atravessando as noites.
As pessoas começam a chegar de tarde, organizam-se em grupos, alguns formam comissões voluntárias. Jovens e velhos, mulheres e homens, militantes e curiosos. Às 18h, a afluência aumenta, e começa a assembleia. A palavra, de quem quiser, é exercida com gosto e desenvoltura. Alguém observa que este “laboratório da palavra livre” é muito mais estimulante do que as passeatas tradicionais, onde as pessoas avançam juntas, com palavras de ordem e cantos, mas raramente conversam entre si. Outro propõe a metáfora do grão de areia: quando se juntam, os grãos podem emperrar a máquina. O momento mais emocionante neste mês de abril foi alcançado pela execução da “Sinfonia nº 9”, dita “Do novo mundo”, de Dvorak, tocada por cerca de 350 músicos, voluntários mobilizados pelas redes sociais, ovacionada pelo público presente.
A faísca que acendeu esta fogueira de cidadania foram as manifestações de março contra a lei proposta pela ministra do Trabalho do governo socialista, Myriam El Khomri. Trata-se de uma ampla reforma da legislação trabalhista, envolvendo, entre outros aspectos, tempo de trabalho, negociações salariais, assistência social. O objetivo logo se tornou evidente: limitar ou guilhotinar direitos sociais em nome da competitividade. É assim que os governos, socialistas ou não, têm enfrentado os efeitos da grande crise iniciada em 2008 e que, até hoje, atormenta as sociedades europeias. Os sindicatos e associações de trabalhadores protestaram. Os estudantes secundaristas disseminaram o #OnVautMieuxqueÇa (a gente vale mais do que isto) e foram às ruas. A polícia desceu o cacete. Bateu em jovens em praça pública, prendendo dezenas. Nas delegacias, segundo denúncias consistentes, houve cenas de intimidação, agressão e tortura moral e física.
Formou-se um caldo grosso de denúncias e críticas. Foi nesta atmosfera que surgiu o movimento da Praça da República.
O que querem estas gentes que se dispõem a ficar em pé de noite? A maioria, por enquanto, quer apenas conversar. Ouvir e ser ouvido. Falar e escutar. O ânimo geral é crítico ao sistema político existente e ao tipo de sociedade que se estrutura na França e na Europa, baseado no vale-tudo do cada um por si e Deus por ninguém. E que se pise no pescoço da própria mãe, desde que se possa alcançar o sucesso pessoal e o consumo ostentatório. Como observa Frédéric Lordon, não é apenas a Lei El Khomri que está em jogo, é a visão de mundo que fundamenta a lei. Um mundo dominado pelos dinheiros, pela atividade frenética, pelo doping dos remédios estimulantes ou calmantes que é preciso tomar, cada vez mais, para segurar o tranco de uma vida angustiante e hostil. Há também uma desconfiança visceral em relação aos partidos e à sua capacidade de representar vontades e anseios reformistas. Como se os processos eleitorais regulares não fossem mais capazes de viabilizar os sonhos de mudança, maiores que as urnas onde se depositam os votos.
De noite, em pé, é um broto a mais numa floração que não cessa: os egípcios da Praça Tahrir; os indignados espanhóis da Puerta del Sol; os turcos em Taksim; os atenienses da Praça Sintagma; Occupy Wall Street nos Estados Unidos e na Austrália. Na tradição remota, e na própria França, os manifestantes invocam a gesta da grande revolução e os Cahiers de Doléances (cadernos de queixas e demandas), de onde surgiu o conceito de cidadania; a Comuna de Paris e o autogoverno popular, em 1871; a greve geral, de 1936, que gerou a Frente Popular e a conquista das férias remuneradas; o movimento de 1968 — embora derrotado, prolongou-se no tempo.
Almamy Kanouté, educador popular, nascido francês de pais africanos, apontou dois problemas que precisam ser encarados: ultrapassar os limites parisienses, integrando os subúrbios e outras cidades, e superar o fascínio pela pura palavra em proveito da ação coletiva em torno de uma plataforma de reivindicações concretas. Desafios que, não enfrentados, podem conduzir o movimento ao declínio.
Tudo ainda é muito frágil, sem dúvida, mas a experiência já marcou os espíritos dos que têm participado. Foi como se houvera uma repolitização das consciências. Além disso, como bem observou Renaud Lambert, “nossos adversários sabem que não ganham quando nós perdemos, mas quando desistimos”. Os que ficam de pé nas noites mostram que nem todos desistiram.
Daniel Aarão Reis
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