quarta-feira, 30 de março de 2016

Mandamentos

A coisa segue assim, você começa a fazer reparos na conduta de um amigo comum. Eu tento mudar de assunto, mas logo eu “entendo!” e você e eu passamos a ver defeitos do amigo que, ao chegar, é alegremente saudado com a observação honesta, segundo a qual, ele não morre tão cedo, pois estávamos justamente falando dele!

– Em seguida, comentamos o livro de um outro amigo. Todos concordamos que se trata de marxismo vulgar. Somos todos marxistas?

– Claro que não! Mas sabemos que as pessoas são maiores que a vida e, por isso, também apreciamos alguns neofascistas carimbados, salientando, com veemência, que não somos fascistas. Apreciados, com os devidos limites, lógico, e incestuosos ladrões do Brasil, mas seria tolice entrar nesse assunto...

– Vale acentuar como moldamos nossas opiniões mais em pessoas do que em instituições. Com isso, entrar é fácil, sair é difícil – somos presos pelo favor. Fabricados em famílias e não em escolas, conventos, oficinas, quartéis, partidos e universidades, fomos treinados a seguir ordens, respeitar os mais velhos e a tomar o nosso grupo de “sangue” como imperativo. Jamais vi alguém de família nobre deixar de invocar a sua linhagem aristocrática. Mesmo em situações formais, o laço de amizade é mencionado. Quando se diz: parei de falar com Fulano ou Sicrana, colocando-os no gelo, o sujeito deixa de ser uma pessoa e torna-se um condenado. Pior do que a prisão é o exílio – a exclusão do grupo.

– O Brasil tem pouco espaço para indivíduos autônomos, que não fazem pedidos ou são parte de uma “turma”. Ele se subdivide numa vasta rede tribal de puxa-sacos de narizes sujos, cujo cordão tem como objetivo solicitar empenhos, visando a tirar vantagem de tudo. Convenhamos que não é fácil conter esse melado de relações no qual muitos se lambuzam mais por amizade do que por convicção. A prova, hoje em dia, é saber se a lei vai vencer o “sabe com quem está falando?” dos amigos no poder.

– Se um amigo demanda, não negamos! O mandamento ou o credo nacional é essa solidariedade chamada de “política” na qual vale tudo, inclusive o axioma segundo o qual a lei (ou a institucionalidade) deve ser aplicada somente para os inimigos. Ora, se a justiça está sempre com os amigos, como levá-la a sério? Se tudo tem um interesse e uma segunda versão, como resolver as crises? Se a honestidade é contextual e depende mais de quem faz do que foi feito, entramos num poço sem fundo. Pois todo sistema tem um limite e o nosso tem um problema: só os subordinados e os adversários têm fundo. O céu é o limite para os superiores e os poderosos. Somos aristocráticos sem saber...
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Tudo isso ocorreu nesta sempre lembrada Sexta-Feira Santa da minha juventude de Juiz de Fora, quando os sermões apocalípticos do padre Olavo faziam o céu escurecer. Nesta última semana, a roda no velho Bar do Soares refrescava a preocupação com a crise nacional. Um garçom sem nome trouxe um sanduíche de presunto, o qual recusei com um severo “não se come carne nesse dia!”. Uma admoestação que saiu, sem eu sentir, de dentro de mim.

Confrontado com os meus limites, enxerguei como o Brasil era mestre na criação de paradoxos morais como a violência e também as intimidades entre senhores e escravos, entre pobres e ricos; e com os populismos narcisistas, segundo os quais todos ganham e ninguém perde. O governo tem mistificado. Tira partido da nossa confusão entre leis e éticas. Algo me diz que isso tem a ver com os velhos mandamentos, que regravam costumes e leis. O fato é que como jamais discutimos o peso dos cargos públicos sobre a vida particular das pessoas – e pouco politizamos o nosso vezo aristocrático revelado nas leis de prisão especial, no direito de recorrer de sentenças e no imenso poder do Estado que mistura interesses universais com os do governo (que é de partidos e pessoas) –, criamos alergia ao igualitarismo. Ser igual sempre foi, e continua sendo, ser inferior. O foro privilegiado é uma figura antidemocrática. Se assim não fosse, teríamos restrições para eleitos e eleitores como queriam (e até hoje querem) os reacionários.

Olhei em volta. É Sexta-Feira Santa, pensei novamente. Neste dia, um cara exilado do mundo moderno chamado Cristo estava se intrometendo na minha vida de ateu. Um sangue novo fazia pulsar o meu coração. Não, não poderia ser o sangue que Ele derramou por todos nós. Será que os nossos sangues estavam misturados? Eu devia estar de porre. Afinal, como diziam Chesterton e Graham Greene, acreditar nisso era uma causa perdida.

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