O súbito aparecimento do Ministério da Saúde na cena política não deveu-se a seus méritos ou deméritos para atender a população. O tema que trouxe a saúde à pauta foi o pacote contendo redução de ministérios e troca de nome do titular da pasta. A conversa, portanto, não referiu-se ao valor que a saúde tem para cada individuo e para a sociedade. O assunto se concentrou em torno do quanto vale o cargo de ministro, medido pelo volume do orçamento da área, quantidade de nomeações para unidades de saúde, articulações com prefeituras e desdobramentos em termos de licitações e contratos. Em vez de votos de saúde, pronto restabelecimento, melhoras, deseja-se o Ministério. A chocante frieza das tentativas de acordos, envolvendo o Ministério da Saúde com bancadas de partidos políticos e de sub-acordos com parlamentares de unidades da Federação admitem interpretações diversas. Dar o anel para não perder os dedos, uma grande prova de compromisso para a formação de maioria no Congresso e discordância com a histórica agenda do SUS. Como na prática argumentos, intenções e interesses se embolam, a oferta do Ministério da Saúde ao uso e abuso de negócios acoplados a projetos políticos-eleitorais provavelmente teve múltiplas motivações.
Desde o início do ano, as medidas e ameaças para desmantelar o SUS se intensificaram. Propostas de cobrança no SUS e separação de atendimento para quem é trabalhador formal e o restante da população, e autorização indiscriminada de investimentos estrangeiros nas atividades assistenciais foram idealizadas e aprovadas pelos apoiadores e postulantes ao cargo de ministro. A desidratação do sistema público agravou. Com o corte de mais de 10% dos gastos federais para a saúde, de um orçamento já racionado a partir de 2014. O SUS aprovado pela Constituição de 1988 foi questionado, modificado e deixado à míngua. A história é longa, os governos de distintos matizes partidários trocaram o SUS, uma política encarada por alguns como velha, desgastada, por programas, com os antecedidos pelo prefixo mais em voga.
A manobra de deixar o SUS de lado e buscar realizar no curto prazo ações para expandir acesso, recentralizou ações na esfera federal. A alocação de recursos específicos, as normas e mesmo leis direcionadas a programas e não ao conjunto do sistema postergaram a construção federativa do SUS. No entanto, a amálgama que permitiu alguma linha de continuidade nas ações do Ministério da Saúde, desde a redemocratização, é o SUS. Foi também em nome do SUS que a simbiose entre o setor privado, o financiamento das campanhas eleitorais e as propostas de redistribuição do fundo público prosperaram. Mas a multiplicação do enredamento do Ministério da Saúde em laços clientelistas e a possibilidade de expansão e reiteração de práticas que estão condenadas pelas operações de investigação de corrupção o tornarão apenas um campo de exploração de interesses particularistas.
A maioria dos países, inclusive na América Latina, possui ministros da Saúde competentes para conduzir debates e projetos sobre qualidade de vida no âmbito interno e nos fóruns internacionais. O desemprego, a desaceleração da economia, a escalada da violência, em suas manifestações objetivas e subjetivas causam sofrimento, adoecimento e mortes. É claro que nenhum sistema de saúde, mesmo acessível e abrangente, resolve esses problemas, mas contribui para equacioná-los, tratá-los e evitar que ameacem a vida. A alocação racional, a priorização de recursos escassos de acordo com parâmetros de necessidades de saúde não é o mesmo que pulverizá-los, distribuí-los entre a base parlamentar. Qualquer gestor da saúde, especialmente o ministro, tem como desafio encontrar alternativas para contornar o aumento das demandas por atenção, restrição orçamentária e os efeitos de políticas cambiais, que aumentam, duplicam, preços de medicamentos, reagentes e equipamentos importados.
A tesoura com duas superfícies de corte atinge o que estava funcionando razoavelmente bem, como por exemplo a dispensação de medicamentos e equipes de atenção primária à saúde, que além de propiciar tratamentos sem interrupções, reduzem gastos das famílias. A defesa da saúde como um domínio simultaneamente especializado e exigente de conexões políticas democráticas não significa desconhecer a força financeira e política do setor privado. É um equívoco ignorar a privatização da saúde. Pode-se não gostar da realidade, criticá-la, mas esses julgamentos, quase sempre, ignoram que sucessivas gerações de trabalhadores, entre as quais a parcela dos sindicalistas que chegou ao poder, acreditam que a assistência privada é a depositária da inovação e qualidade. O jogo não está equilibrado, os enlaces, contraídos com finalidades distanciadas do esforço de trazer a vida humana, a vida social, para o centro das decisões políticas, expulsam o pessoal da saúde pública da partida. Encerrar dessa forma um longo ciclo de batalhas pelo SUS é sintoma de profunda melancolia social. Hipócrates diagnosticaria excesso de bile, influência de Saturno sobre o humor. Nos dias de hoje, o impeachment do SUS significa abandono dos princípios de igualdade, solidariedade e respeito mútuo. A cura, seja pelos cânones da medicina grega, seja pela recusa à degradação da política de saúde, requer mudança de ares e lugares e restabelecimento de outras aspirações que não a posse e os desmandos.
Ligia Bahia
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