sábado, 14 de fevereiro de 2015

Muita sede

Neste verão, “caminhar sedento” deixou de ser uma metáfora para quem corre atrás de suas paixões e virou a hipérbole perfeita para uma realidade a que teremos de nos acostumar cedo ou tarde durante o ano de 2015. A crise hídrica bateu na porta, nossa sede este ano será mesmo sede, será aquela vontade física mesmo, necessidade pura, simples e natural de água, não será sede de conhecimento, de amor, sede de carinho, nada disso. Importante será a água, deixemos para depois o abraço, a reflexão, a piada, o beijo, tratemos de cuidar da sobrevivência.

Somos nós o ex-país da fartura. Ruiu o deslumbramento com a terra brasileira, sentimento muito nosso, ligado ao privilegiado regime de chuvas que sempre caíram do querido céu azul, alimentando os campos verdes, as bacias das hidrelétricas, inundando nossa alma. Parece que a fonte secou e o sudeste deste país pode enfim congraçar sem preconceitos com os cidadãos do nordeste, galera que sabe tudo de como sobreviver na estiagem. Durante anos vivemos em festa sem notar como éramos afortunados, sabemos hoje, os anos de água na alma se foram e podem demorar para retornar.

O pessoal que governa por aqui anda batendo perna atrás dos riachinhos da cidade, fazem de conta que vão resolver o problema da crise hídrica. Quem vai resolver é o povo, tenho que dizer. Lavar carro com mangueira, tomar banho demorado, esquecer de consertar a pia que pinga vão ser problema depois deste verão, capaz de os palacianos inventarem uma multa. Dinheiro para eles nunca é problema.

Fico imaginando qual seria o papel de um cronista em uma terra seca com chance fatal de sede. Minha sede na alma, o que diria? Escrever seria falar de uma população hostil e louca por cravar os dentes nos que se arriscassem nas ruas sem a proteção de guarda-costas saciados. O que um cronista diria da vida em um território assim? Cadê as ruas mais ou menos seguras para onde lançar o meu olhar apalermado? Tenho certeza de que seria capturado por uns sedentos que chupariam meus olhos e cravariam meu crânio no centro de um poço artesiano.

E a seca no mundo… alguém em sã consciência acredita que sobreviveria ao caos de um planeta em conflito constante por causa da falta de água? Nós não, outros talvez, nossos avós sem dúvida, e nossos filhos não, nossos netos pode ser, poderão herdar as cidades secas e se darem bem, terão que ganhar a vida sob o jugo de corporações dessalinizadoras e clãs proprietários de poços vagabundos. Ruim, mas ainda assim uma vida.

Por enquanto a gente se defende. Um apocalipse desta ordem está totalmente descartado, dizem as autoridades. Mas saibam que no caso de uma seca mais grave quem pode, pode, e poderá sempre comprar passagens para Miami e desfrutar por lá de uma caipirinha gelada.

Os cronistas que se danem, dirão.

Os sedentos também.

Obs.: Enquanto reviso esta crônica, chove a cântaros por aqui. Água, água, água, já posso caminhar sedento.

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