Chegou ao bairro social para fazer um inquérito e ficou seis anos a trabalhar e a estudar um grupo de traficantes de crack, de nome Black Disciples. “Isto é uma guerra, meu”, disse-lhe um traficante. “Todos os dias as pessoas lutam para sobreviver; por isso, estás a ver, fazemos o que podemos. Não temos qualquer escolha, se isso significa ser morto que se lixe, o que é que um preto por aqui pode fazer para dar de comer à família?”
No livro Freakonomics, no qual se conta esta história, conclui-se que para um negro dos bairros a maior hipótese de triunfo económico está no tráfico de droga. Isto apesar de em quatro anos haver uma hipótese em quatro de acabar morto. E o que recebe um soldado proletário do crime é inferior a 3,5 dólares à hora.
Para se perceber o nível de perigosidade nos gangues, citemos o Departamento de Estatísticas do Trabalho nos Estados Unidos da América que apresenta lenhador como sendo a profissão considerada mais arriscada, com uma média de uma morte por 200 trabalhadores.
A mortalidade nos traficantes dos bairros é superior até à de mais de uma centena de pessoas que esperam ser executadas no corredor da morte no Texas.
O investigador interroga-se como é possível que nessas condições tantos jovens sigam a carreira do crime nos bairros pobres de Chicago. Para muitos adolescentes dos bairros poder ser chefe de quadrilha é o único sonho visível. Mais de 56% das crianças do bairro vivem abaixo do limiar da pobreza. São muito poucos os que chegam à universidade. O caminho para um trabalho decente legítimo é praticamente impossível.
“O cheiro acre de morte no ar, misturado com o do orvalho, espalhava-se pela Praça São Lucas, onde termina o bairro da Penha e começam as favelas do complexo com o mesmo nome, na Zona Norte do Rio. Já passava da meia-noite e meia. Em frente ao supermercado Inter formava-se uma roda com cerca de duzentas pessoas, entre trabalhadores, estudantes, aposentados e pessoas ligadas ao tráfico. Diante delas, 25 cadáveres jaziam no chão, enfileirados um ao lado do outro, todos homens, todos também apontados pelos presentes como moradores da região.”
“Magros, gordos, pardos, pretos, brancos, tatuados, velhos, jovens, os corpos foram-se multiplicando conforme uma camioneta preta os trazia de diferentes pontos da favela. Eram carregados por um grupo de moradores liderado por Erivelton Vidal Correia, presidente da Associação Comunitária do Parque Proletário da Penha. Usando pares de luvas cirúrgicas, enfileiravam os corpos lado a lado, cabeça com cabeça, sobre uma extensa lona preta e azul, na imagem que mais tarde ganhou os portais de notícia. ‘Espaço, espaço, espaço’, gritava Correia quando as pessoas que caminhavam por ali atrapalhavam o trabalho”, assim começa uma reportagem da revista Piauí, escrita pelos jornalistas Matheus de Moura e Leonardo Coelho, sobre a chacina policial no Complexo do Alemão e na favela da Penha.
Durante dias, as famílias procuraram, desesperadas, os desaparecidos. São já cerca de 132 mortos conhecidos, o maior massacre policial da História do Brasil. Um país em que anualmente há mais de 60 mil mortos por violência, grande parte por balas da polícia.
Uma mãe tenta desesperadamente saber se o seu filho está vivo. Um dos inspetores pergunta: “Seu filho veio para cá pra traficar aqui, né?” Ao que a mãe responde: “Não, ele não era bandido.” O polícia continua, rindo: “Se não era bandido, então por que morreu?”
Uns dias depois, um pano no cenário de um concerto relembrava: “Quem lucra com o tráfico na favela não vive lá.”
“As políticas de segurança pública baseadas no confronto armado e no extermínio de suspeitos proporcionam custos altíssimos à sociedade e não contribuem para a diminuição da ocorrência de crimes, mas proporcionam ganhos eleitorais”, continua a reportagem
As chacinas policiais são inúteis para diminuir a criminalidade, apenas servem para reprimir as populações, mostrar-lhes que não são cidadãos. Já não se trata de uma questão de segurança pública, mas da própria democracia.
A 23 de junho de 1993, ocorreu o massacre da Candelária, onde milícias pagas por comerciantes, constituídas por polícias, assassinaram oito jovens sem-abrigo que dormiam à porta dessa igreja do Rio de Janeiro.
Quando estive no Brasil, como participante no primeiro Fórum Social Mundial, conheci um ativista austríaco que acompanhava crianças de rua e tinha conhecido alguns dos miúdos mortos. Contou-me que num encontro entre o responsável da polícia brasileira e o seu homólogo da capital austríaca, o primeiro perguntou “quantas pessoas matava a polícia austríaca?”, tendo o europeu respondido, surpreso, que “não é suposto a polícia matar pessoas”.
Há uns anos, moradores de favelas do Rio de Janeiro denunciaram uma série de violações praticadas por militares. No relatório parcial Circuito de Favelas por Direitos, elaborado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, em 2018, registam-se roubos, invasões de casas, agressões físicas e até violações.
Conforme conta um morador no relatório, numa dessas invasões militares das favelas teriam ocorrido as violações: “Eles entraram numa casa que era ocupada pelo tráfico. Lá tinha dois garotos e três meninas. As meninas eram namoradas de traficantes. Era pra ser todo o mundo preso, mas o que aconteceu é que os policiais ficaram horas na casa, violaram as três meninas e espancaram os garotos. Isto não pode estar certo.”
"Homo Sacer: O Poder Soberano e Vida Nua" é um livro do filósofo italiano Giorgio Agamben, publicado em 1995. O termo homo sacer refere-se a um indivíduo que é excluído da comunidade política e, portanto, é submetido ao poder, sem limites, das autoridades soberanas. Na antiga lei romana, um homo sacer é uma pessoa que pode ser morta sem que quem o mate enfrente consequências legais.
Agamben introduz a noção de “vida nua”, referindo-se a uma forma de existência despojada de direitos e proteções políticas. Essa noção revela uma vida que é simplesmente biológica, desprovida de qualquer significação social ou política. O homo sacer está reduzido à mera existência, sem os direitos conferidos pela cidadania.
O filósofo explora a relação entre soberania e o conceito de estado de exceção, em que as leis normais são suspensas em favor de medidas extraordinárias. Essa condição muitas vezes surge em tempos de crise, evidenciando como os governos podem contornar normas legais em nome da segurança ou da emergência.
Os processos de inclusão e exclusão, juntamente com a gestão da vida e da morte, revelam como o poder molda a existência humana num nível fundamental.
Em 1974, o economista brasileiro Edmar Lisboa Bacha cunhou o conceito Belíndia. O Brasil é um país que tem dez milhões de pessoas que vivem como na Bélgica e o resto vive como na Índia. A violência policial é um instrumento fundamental para que num país riquíssimo a maior produção seja a da grande pobreza. Uma situação que só pode mudar se a maioria perceber a sua situação e a sua força.
No mítico livro Capitães da Areia, do escritor brasileiro Jorge Amado, conta-se a história de um grupo de meninos de rua que vão crescendo e politizando-se, saindo da criminalidade e adquirindo consciência da sua situação. O herói Pedro Bala, uma alusão a Peter Pan, passa de pequeno criminoso a revolucionário.
Na realidade as coisas são mais complexas. Nos bairros, a grande maioria da população é trabalhadora e não gente ligada ao tráfico de droga. Aqui sempre que a criminalidade cresce, a esperança revolucionária diminui, e o contrário também é verdade.
No seu livro City of Quartz, sobre a história de Los Angeles, o historiador Mike Davis relata a implantação do partido revolucionário Black Panters (Panteras Negras) e a repressão a que foi sujeito.
A execução dos seus líderes pela polícia, abatendo os militantes, deixou um vazio de poder nos bairros que permitiu que os grupos criminais voltassem a dominar as ruas.
A entrada do crack nos bairros veio mudar tudo ainda mais. Mudou a economia local e a violência, multiplicou as guerras entre bandos nas ruas. Mas também destruiu uma geração de jovens.
“Estes jovens negros toxicodependentes e apáticos, que choramos hoje, são o resultado da nossa incapacidade de proteger os Panteras Negras nos anos 60”, dizia, ao jornal britânico The Guardian, Sonia Sanchez, poetiza e ativista negra.
Em fevereiro de 1969, Carter e Huggins, dois líderes dos Panters, em Los Angeles, foram assassinados por um grupo nacionalista infiltrado pela polícia. A forte repressão policial com recurso à liquidação física dos principais militantes criou um vazio, que o próprio jornal The Los Angeles Times reconheceu ter aberto a via ao recrudescimento dos gangues nos anos 70. Como dizia um jovem de 16 anos, do gangue dos Crips, citado por Mike Davis, “os gangues jamais vão desaparecer. Acreditas que vão dar-nos emprego a todos?”
Um imigrante nicaraguense chamado Oscar Danilo Blandón foi considerado o maior importador de cocaína colombiana. Blandón vendia muito crack aos traficantes que brotavam em Los Angeles. Mais tarde, veio confessar que o fazia, com o apoio da CIA, para obter dinheiro para a guerrilha anti-sandinista dos Contra da Nicarágua.
Ainda hoje, para muitos militantes negros a introdução da droga nos guetos teve mão da CIA e serviu para financiar a contrarrevolução na América Latina e destruir o envolvimento político dos jovens negros.
Este processo de divisão espacial, que cria cidades de condomínios vigiados para os ricos e subúrbios cada vez mais degradados e empobrecidos para os trabalhadores mais pobres, não é um exclusivo do Brasil e dos EUA.
Nos subúrbios de Paris e Lisboa vive-se a mesma realidade numa escala de violência diferente.
Mas também aqui as operações militarizadas nos bairros sucedem-se. As detenções, sem culpa formada, multiplicam-se. A violência sistemática da polícia contra os jovens dos bairros é algo estrutural.
Alinhar 100 moradores contra uma parede, sem poderem mover-se, na rua principal de um bairro como o Casal da Mira é algo considerado normal pela polícia. As autoridades baseiam-se em diretivas, como a que cria as Zonas Urbanas Sensíveis, que classificam os bairros pela classe social das pessoas que lá vivem e a sua “composição étnico-social”. Estes bairros identificam-se pela quase total ausência das políticas públicas. As pessoas não são tratadas como cidadãos. Estamos num território em que as autoridades atuam como forças de ocupação. Há poucos mortos comparando com o Brasil, mas há muito que há gente morta a mais.
Odair Moniz, Romão Monteiro, Ângelo “Angoi” Semedo, Manuel António Tavares Pereira (Tony), Carlos Reis (PTB), José Carlos Vicente, conhecido por “Teti”, João, Edson Sanches (Kuku) são algumas destas vidas muito cedo ceifadas.
Alinhar 100 moradores contra uma parede, sem poderem mover-se, na rua principal de um bairro como o Casal da Mira é algo considerado normal pela polícia. As autoridades baseiam-se em diretivas, como a que cria as Zonas Urbanas Sensíveis, que classificam os bairros pela classe social das pessoas
Nestes espaços com poucos direitos, a polícia parece ser o único serviço público que conhecem. Por vezes, há alguns programas sociais para dar muito menos dinheiro do que custariam políticas sociais justas e equitativas, mas que servem para tornar dependente parte das lideranças locais.
Ali vivem muitas das pessoas que mantiveram o País a trabalhar durante a pandemia, gente que labora, mas que é invisível do ponto de vista da representação política e dos direitos.
Se, no próximo dia 11 de dezembro, os muito milhares de habitantes dos bairros e os imigrantes que trabalham todos os dias pararem pelos seus direitos a ter uma vida melhor – salários, transportes, papéis, educação, habitação e contra o pacote laboral –, o País vai sentir. E uma grande força que é invisível vai fazer frente à xenofobia daqueles que são pagos para manter estas pessoas como gente sem nenhum direito.

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