Mas convém separar as águas. O Bloco de Esquerda participou – não organizou, não comandou, não monopolizou. Foi, no grande quadro, uma gota dentro do mar da flotilha. A força da flotilha não esteve numa sigla, mas na convergência improvável de ativistas, figuras públicas e cidadãos anónimos que fizeram da visibilidade a sua arma. A pedagogia democrática, por vezes, pede barulho: sem ele, muitos temas não chegam à agenda e outros hibernam no conforto da indiferença. Também é verdade que muitos dos que participam têm as suas agendas pessoais, e o BE não será inocente nessa matéria.
Política não é apenas votar; é também disputar narrativas. A flotilha venceu a primeira batalha: pôs pressão, gerou mobilização e desencadeou protestos por toda a Europa. Quando a rua se mexe em Madrid e em Estocolmo, em Roma e em Atenas, é porque a centelha acende algo que já ali estava: cansaço com a normalização da guerra, fadiga moral perante o sofrimento civil, impaciência com a retórica sem consequências. O êxito mediu-se na capacidade de forçar perguntas incómodas e de obrigar governos a explicarem escolhas.
Israel respondeu na gramática da força. Intercetou os barcos, invocou o bloqueio e deslocou para a esfera securitária o que era, sobretudo, um gesto político. A disputa jurídica é conhecida: o Relatório Palmer (painel designado pelo secretário-geral da ONU) considerou lícito o bloqueio naval, ao passo que peritos de direitos humanos da própria ONU o classificaram como contrário ao direito internacional. Em ambos os casos, outra coisa ficou exposta: a exceção pesa tanto como a norma. E aqui Israel voltou a falhar o teste da proporcionalidade.
Basta ver o episódio que se tornou viral: o ministro da Segurança Nacional, Ben-Gvir, filmou-se a apontar para ativistas sentados no chão, chamando-lhes “terroristas”. Política elementar: transformar uma operação militar em teatro de humilhação é oferecer munição à narrativa do adversário, amplificando exatamente aquilo que se pretendia descredibilizar. Em democracia, poder não é licença para encenar degradação.
Houve ainda a guerra das insinuações: acusações oficiais de financiamento ou coordenação por redes próximas do Hamas, de imediato rejeitadas pelos organizadores. É legítimo escrutinar; é imprudente condenar sem prova. A dúvida, usada como arma, “resvala” quando não vem acompanhada de evidência verificável e publicamente apresentada. Entre alegação e refutação, o essencial perdia-se: a flotilha nunca foi uma operação técnica de “ajuda humanitária” no sentido estrito; foi, assumidamente, um gesto simbólico de alto impacto – e o símbolo vale porque condensa, em minutos, o que relatórios e cimeiras não fixam em meses.
Também aqui importa não fingir neutralidades impossíveis. As democracias têm a obrigação de proteger o direito à manifestação e punir abusos quando existam; Israel tem a obrigação de garantir a sua segurança. Mas a prudência recomenda que a resposta a gestos políticos não seja desenhada como se fosse uma batalha naval. Uma interceção em alto mar pode caber no manual; transformá-la em espetáculo – com ministros a encenar vitórias morais – jamais caberá no bom senso. O governo israelita terá ganhado a apreensão dos barcos; perdeu a batalha da imagem. E, em política, a imagem é muitas vezes o espelho da realidade.
Não, a flotilha não é “do Bloco”. É de quem percebeu que a pressão pública é uma linguagem com gramática própria. Pode-se gostar ou não da mensagem – mas negar o alcance político do gesto é confundir a gota com o mar. E foi o mar que, desta vez, ditou a maré.

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