– Oh, você não pode se safar disso. Somos todos loucos por aqui. Eu sou louco. Você é louca.
– Como você sabe que eu sou louca?
– Deve ser, ou não estaria aqui.
Lewis Carroll
Na sexta-feira, 22 de agosto de 2025, no metrô a caminho da Mostra Mundo Árabe de Cinema no CCBB, um rapaz meio maluquinho perguntou o significado do meu barrete nigeriano, se era algo místico – respondi que eu era bruxo. Ele então perguntou se eu era de umbanda, onde era o meu terreiro e se eu morava na zona leste (estávamos na linha vermelha, no sentido Itaquera) – eu disse que era Xangô e que morava na lua. Aí ele perguntou se eu era louco.
Tubby, o personagem central do romance Terapia, de David Lodge, produzia roteiros para uma série de televisão que alegrava todos os ingleses – mas ele mesmo era todo encafifado, vivia mergulhado em crises existenciais e sujeitava-se a todo tipo de tratamentos alternativos, sem sucesso. Contou para a sua psicóloga que ficou angustiado, sofreu muito vendo um mendigo todo esfarrapado, deitado na calçada à entrada da biblioteca central. A psicóloga perguntou se o mendigo parecia estar sofrendo e ele respondeu, “não, ele parecia feliz”.
Em Roger Rabbit, de Robert Zemeckis, o enciumado amante humano pergunta para a Jessica o que ela viu naquele coelho, e ela diz que Roger, batendo palminhas, fazia ela rir. No filme que fui assistir no CCBB, Obrigado por escolher o nosso banco, de Laila Abbas, filmado e passado em Ramallah, uma das personagens centrais pergunta para o marido o que a amante dele tem que ela não tem, e ele responde, “ela ri”. Todos os personagens da excelente sátira são cidadãos de classe média alta, vivendo em luxuosos apartamentos uma vida tão fútil como em qualquer cidade do ocidente – bancos com layout impecável, contas correntes milionárias, automóveis sofisticados, esteticistas cuidando da autoestima de privilegiados clientes, relações extraconjugais, problemas dos pais com filhos adolescentes etc. A carnificina em curso na Palestina só aparece marginalmente, como quando a mulher “que não ri” pergunta ao irmão se ela teria que esperar que a situação palestina fosse resolvida para poder se divorciar do marido infiel que maltratava o filho rebelde.
No documentário catastrófico e surrealista que eu havia assistido no CCBB na véspera, Xoftex, de Noaz Deshe, palestinos vivem num campo de refugiados na Grécia, aguardando receberem asilo. Os dois filmes foram lançados em 2024, em plena ofensiva do exército “de defesa” israelense na Palestina e parecem se referir a lugares e tempos muito distantes um do outro. Custa a crer que as cenas de Laila Abbas foram tomadas em Ramallah, capital administrativa da Cisjordânia, 10 quilômetros de distância de Jerusalém, ocupada ilegalmente por Israel.
Ao final da Primeira Guerra Mundial, os judeus representavam apenas 8% da população da Palestina histórica. Com o fim do Império Otomano, o início do Mandato Britânico e a restrição à imigração para os Estados Unidos, a entrada de judeus na Palestina foi estimulada. Mas a situação agravou-se com a ascensão dos nazistas ao poder na Alemanha em 1933 e principalmente a partir de 1935, com as Leis de Nuremberg, que declararam os judeus cidadãos de segunda categoria. A palavra de ordem nazista era “Juden raus! Auf nach Palastina!”, (“Judeus Fora! Fora para a Palestina!”).
O afluxo dos judeus alemães provocou a revolta palestina de 1936-1939; após a Segunda Guerra Mundial, os judeus sobreviventes foram autorizados pelas Nações Unidas a invadir o território palestino; em 1967, os israelenses passaram a assentar colônias na Faixa de Gaza e na Cisjordânia; depois do massacre de Sabra e Chatila de 1982, Primo Levi declarou que “Israel foi um erro em termos históricos”; e a ocupação segue num crescente até a presente data. A violência sionista contra população civil pode ser vivenciada no documentário de 2010, Cinco câmeras quebradas, de Emad Burnat, muito anterior à escalada iniciada em 7 de outubro de 2023.
Na quinta-feira, ao sair do cinema, parecia que eu ainda não tinha saído do filme. O calçadão do centro de São Paulo estava todo esburacado, cercado e com passagens interrompidas. Quando atingi o Viaduto do Chá, a iluminação do Teatro Municipal e do prédio da Light, até por conta da minha vista cansada, conferia um aspecto surrealista a São Paulo, reforçando o clima de Xoftex. Instituições filantrópicas forneciam alimentos para pessoas carentes que formavam imensas filas ao lado do teatro iluminado como um bolo de noiva.
Na sexta-feira de noite, na saída do cinema, os arredores da Barão de Itapetininga estavam em festa, antecipando a primavera, depois de um longo período de baixas temperaturas em São Paulo. A Rua Dom José de Barros estava intransitável – uma multidão, mesas na calçada, música em alto som, pessoas dançando, cerveja, churrasquinho de gato etc. – o povo na rua, uma alegria contagiante.
Palestinos refugiados, filas de pessoas em busca de comida na capital da América Latina, classe média endinheirada em Ramallah, a violência sionista contra a população civil, o povo em festa no centro de São Paulo, o Brasil que corre o risco de se transformar em bucha de canhão na guerra entre os Estados Unidos e a China – no chuveiro, lavando a minha cabeça cheia de problemas, fico pensando nos braços e nas pernas que levantam voo durante os treinos de boxe e outras técnicas de autodefesa, que me cercam enquanto pratico, com os olhos cheios de esperança, yoga no Parque Augusta.
Samuel Kilsztajn
Tubby, o personagem central do romance Terapia, de David Lodge, produzia roteiros para uma série de televisão que alegrava todos os ingleses – mas ele mesmo era todo encafifado, vivia mergulhado em crises existenciais e sujeitava-se a todo tipo de tratamentos alternativos, sem sucesso. Contou para a sua psicóloga que ficou angustiado, sofreu muito vendo um mendigo todo esfarrapado, deitado na calçada à entrada da biblioteca central. A psicóloga perguntou se o mendigo parecia estar sofrendo e ele respondeu, “não, ele parecia feliz”.
Em Roger Rabbit, de Robert Zemeckis, o enciumado amante humano pergunta para a Jessica o que ela viu naquele coelho, e ela diz que Roger, batendo palminhas, fazia ela rir. No filme que fui assistir no CCBB, Obrigado por escolher o nosso banco, de Laila Abbas, filmado e passado em Ramallah, uma das personagens centrais pergunta para o marido o que a amante dele tem que ela não tem, e ele responde, “ela ri”. Todos os personagens da excelente sátira são cidadãos de classe média alta, vivendo em luxuosos apartamentos uma vida tão fútil como em qualquer cidade do ocidente – bancos com layout impecável, contas correntes milionárias, automóveis sofisticados, esteticistas cuidando da autoestima de privilegiados clientes, relações extraconjugais, problemas dos pais com filhos adolescentes etc. A carnificina em curso na Palestina só aparece marginalmente, como quando a mulher “que não ri” pergunta ao irmão se ela teria que esperar que a situação palestina fosse resolvida para poder se divorciar do marido infiel que maltratava o filho rebelde.
No documentário catastrófico e surrealista que eu havia assistido no CCBB na véspera, Xoftex, de Noaz Deshe, palestinos vivem num campo de refugiados na Grécia, aguardando receberem asilo. Os dois filmes foram lançados em 2024, em plena ofensiva do exército “de defesa” israelense na Palestina e parecem se referir a lugares e tempos muito distantes um do outro. Custa a crer que as cenas de Laila Abbas foram tomadas em Ramallah, capital administrativa da Cisjordânia, 10 quilômetros de distância de Jerusalém, ocupada ilegalmente por Israel.
Ao final da Primeira Guerra Mundial, os judeus representavam apenas 8% da população da Palestina histórica. Com o fim do Império Otomano, o início do Mandato Britânico e a restrição à imigração para os Estados Unidos, a entrada de judeus na Palestina foi estimulada. Mas a situação agravou-se com a ascensão dos nazistas ao poder na Alemanha em 1933 e principalmente a partir de 1935, com as Leis de Nuremberg, que declararam os judeus cidadãos de segunda categoria. A palavra de ordem nazista era “Juden raus! Auf nach Palastina!”, (“Judeus Fora! Fora para a Palestina!”).
O afluxo dos judeus alemães provocou a revolta palestina de 1936-1939; após a Segunda Guerra Mundial, os judeus sobreviventes foram autorizados pelas Nações Unidas a invadir o território palestino; em 1967, os israelenses passaram a assentar colônias na Faixa de Gaza e na Cisjordânia; depois do massacre de Sabra e Chatila de 1982, Primo Levi declarou que “Israel foi um erro em termos históricos”; e a ocupação segue num crescente até a presente data. A violência sionista contra população civil pode ser vivenciada no documentário de 2010, Cinco câmeras quebradas, de Emad Burnat, muito anterior à escalada iniciada em 7 de outubro de 2023.
Na quinta-feira, ao sair do cinema, parecia que eu ainda não tinha saído do filme. O calçadão do centro de São Paulo estava todo esburacado, cercado e com passagens interrompidas. Quando atingi o Viaduto do Chá, a iluminação do Teatro Municipal e do prédio da Light, até por conta da minha vista cansada, conferia um aspecto surrealista a São Paulo, reforçando o clima de Xoftex. Instituições filantrópicas forneciam alimentos para pessoas carentes que formavam imensas filas ao lado do teatro iluminado como um bolo de noiva.
Na sexta-feira de noite, na saída do cinema, os arredores da Barão de Itapetininga estavam em festa, antecipando a primavera, depois de um longo período de baixas temperaturas em São Paulo. A Rua Dom José de Barros estava intransitável – uma multidão, mesas na calçada, música em alto som, pessoas dançando, cerveja, churrasquinho de gato etc. – o povo na rua, uma alegria contagiante.
Palestinos refugiados, filas de pessoas em busca de comida na capital da América Latina, classe média endinheirada em Ramallah, a violência sionista contra a população civil, o povo em festa no centro de São Paulo, o Brasil que corre o risco de se transformar em bucha de canhão na guerra entre os Estados Unidos e a China – no chuveiro, lavando a minha cabeça cheia de problemas, fico pensando nos braços e nas pernas que levantam voo durante os treinos de boxe e outras técnicas de autodefesa, que me cercam enquanto pratico, com os olhos cheios de esperança, yoga no Parque Augusta.
Samuel Kilsztajn
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