No Brasil contemporâneo, essa lógica encontrou terreno fértil nos presídios. Líderes de facções e traficantes passaram a se “converter” ao pentecostalismo, reduzindo penas e ganhando legitimidade espiritual. A frase de Jesus – “Meu reino não é deste mundo” – foi silenciada para dar lugar a um projeto de poder religioso. Projeções indicam que os evangélicos podem se tornar maioria entre 2032 e 2035, impulsionados por conversões nas faixas etárias mais jovens e pelo crescimento nas regiões Norte e Centro-Oeste.
Pesquisadores como Gedeon Freire de Alencar, Ronaldo Almeida, Edin Sued Abumanssur e David Mesquiati de Oliveira revelam que o pentecostalismo nos presídios não apenas floresceu – ele se entrelaçou com as dinâmicas do poder informal, criando uma fusão singular entre fé e facção. O púlpito e o comando se cruzam onde o Estado falha. Líderes religiosos emergem como mediadores entre o sagrado e o ilícito, oferecendo disciplina, pertencimento e até proteção espiritual.
Essa simbiose entre fé e poder já havia sido denunciada por Délcio Monteiro de Lima em Os Demônios Descem do Norte (1987). O autor escancara como seitas pentecostais vindas dos Estados Unidos se infiltraram nas periferias latino-americanas com discursos de salvação, mas práticas de dominação. “Os templos se multiplicam como botequins”, escreve, revelando uma expansão que não salva – seduz. A fé, travestida de consolo e prosperidade, passou a moldar consciências, silenciar revoltas e alinhar os pobres ao projeto político do Norte.
Essa lógica extrapolou os muros das prisões e invadiu o universo político. A CNBB, em sua travessia pelos ventos da história, buscou dialogar com os sinais dos tempos – mas nem todo tempo é de concórdia. Dentro das próprias comunidades católicas, brotaram grupos ultraconservadores que, em vez de beber da fonte do Evangelho, sorvem da retórica do medo. Flertam com uma simbiose pentecostal que não busca o Espírito, mas o poder; desejam um Estado teocrático, onde dogmas substituam direitos, e onde o crucifixo se confunda com o cetro.
São pessoas comuns, paradoxais em sua fé e política: condenam o aborto em nome da vida, mas celebram a “arminha” como gesto de alinhamento ideológico, mesmo diante de discursos que relativizam o genocídio. Essa incongruência não é exceção – é sintoma. Como na campanha contra a Fraternidade Ecumênica de 2021, onde o chamado ao diálogo inter-religioso foi atacado como “infiltração comunista”.
Esses grupos representam uma intersecção inquietante entre fé, conservadorismo e ativismo digital. Mimetizam a estética da extrema direita: vídeos inflamados, acusações infundadas, campanhas de boicote. Transformam o púlpito em palanque, e o sacrário em
quartel. Acusam a CNBB e o CONIC de promover “ideologias revolucionárias”, sem perceber que a própria Boa Nova já foi, em seu tempo, uma revolução contra o império, contra a exclusão, contra o ódio.
Dentro da própria Igreja, ergue-se um muro de polarização – onde o irmão se torna inimigo, e o Evangelho é usado como escudo, não como ponte. É um paradoxo sagrado: enquanto o Espírito sopra sobre o colegiado da CNBB como brisa de Pentecostes, sinal vivo da sinodalidade sonhada pelo Concílio Vaticano II, há quem, em nome de uma fé endurecida, levante muralhas contra o vento. Criticam o que é, na verdade, manifestação da Ruah divina: o discernimento coletivo, a escuta plural, o caminhar em comunhão.
Se outrora a Teologia da Libertação era “o perigo”, agora o cavalo de Tróia reaparece. Mas desta vez, ele não vem de fora: está dentro dos muros da fé, sorrindo como esperança, mas carregando a ruína.
Celso José Machado
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