Segundo Freud, esperávamos que as nações do mundo, criadoras de elevadas realizações científicas e artísticas, pudessem solucionar seus conflitos de modo civilizado. Mas “a guerra na qual nos recusávamos a acreditar irrompeu”, desprezando “todas as restrições conhecidas como direito internacional”. E ela “esmaga com fúria cega tudo que surge em seu caminho, como se, após seu término, não fosse mais haver nem futuro nem paz entre os homens”.
O cenário atual se assemelha ao que culminou nas duas Grandes Guerras. A corrida armamentista e a exacerbação dos nacionalismos; as disputas territoriais e a falência dos acordos internacionais; sem falar num retorno a uma tensão imperialista (que faz o presidente dos Estados Unidos, por exemplo, ameaçar países latino-americanos).
Traumatizada pelas atrocidades da guerra, a humanidade tinha conseguido instituir organizações para mitigar seus impulsos destrutivos mais violentos. Depois de um breve apogeu democrático e diplomático, entre os anos de 1980 e 2000, constatamos hoje que a democracia e a diplomacia não são rochas sólidas e perenes: são cristais delicados que logramos lapidar, mas agora correm o risco de estilhaçar outra vez.
Além da desilusão, o texto de Freud apresenta outro mecanismo psíquico comum diante da guerra, e também da morte: a negação.
A ideia da aniquilação de si mesmo e daqueles que amamos, na sua radicalidade, é insuportável. O psiquismo constrói estratégias para se defender desse horror. Vivemos como se o encontro com a finitude não fosse inevitável. Prova disso, para Freud, é que sentimos o bafo da morte (nossa ou × alheia) como um susto, uma dor que nos pega desprevenidos — logo a nós, animais que se distinguem pela suposta consciência da morte, como diriam os existencialistas.
Negamos as crianças mortas de fome em Gaza. Negamos a emergência climática e o risco de novas pandemias letais. Negamos a gravidade da ascensão dos fascismos alimentados pelo ódio, emergido dos bueiros das redes sociais.
Mas Freud deixou outro texto sobre a morte que aponta uma direção possível para a nau de loucos em que embarcamos. Em Sobre a Transitoriedade (1916), ele narra um passeio num jardim, na companhia de um poeta que sofria porque todas aquelas flores primaveris estariam mortas no inverno. A resposta de Freud é surpreendente: é o fato de que vão morrer, no futuro, que torna essas flores muito mais preciosas e dignas de admiração e cuidado, no presente. O valor da vida talvez derive da sua condição transitória.
E se a vida é essa joia rara, cabe a nós decidirmos qual é a vida que queremos cultivar. Uma vida agressiva e paranóica, em que a diferença é temida e o outro é odiado? Ou uma vida em que tentamos cuidar juntos do nosso jardim, onde brotam as flores e os espinhos da humanidade?

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