quinta-feira, 3 de julho de 2025

Sentir, acreditar e compartilhar. A pós-verdade em tempos de guerras

Recentemente, me vi numa situação inusitada que me causou estresse e até um sentimento de culpa. Partilhei um vídeo feito com deepfake no close friends do Instagram. Alguns minutos depois do impulso, resolvi analisar melhor as imagens e notei que o vídeo havia sido feito com Inteligência Artificial e, no áudio, constavam informações de uma suposta pesquisa científica que, com alguns cliques, logo se descobre que não existe, tampouco a veracidade da informação que lá constava. Senti-me traída pelo perfil que publicou o vídeo, sobretudo por eu considerá-lo uma fonte de informação segura.

Na hora, pensei: se eu, que sou treinada para identificar conteúdos com informações falsas e tenho um olhar atento e crítico, caí numa armadilha vinda de um perfil de um veículo de comunicação supostamente sério, o que será que acontece com quem não tem o mesmo repertório que eu, nos caóticos grupos de WhatsApp?

A questão é que o impulso de partilhar o tal vídeo veio de uma emoção muito pessoal: meses atrás, recebi a notícia de que uma amiga havia falecido em decorrência do tipo de doença que o vídeo abordava. Ou seja, instantaneamente, aquele conteúdo acolhia a minha dor e, assim, tornou-se uma verdade a ponto de eu querer que outras pessoas acreditassem e, por isso, o partilhei.

O conceito de pós-verdade (post-truth) surge na filosofia contemporânea para explicar como a desonestidade e a mentira tornaram-se socialmente aceitas e como a verdade passou a ser relativizada em nome do conforto emocional. Na era da pós-verdade, somos condicionados a valorizar mais o que acolhe e respeita o que sentimos do que aquilo que, de fato, é real. Só o fato de nos tocar já é suficiente para acreditarmos mais do que em dados concretos.


Com isso, vivemos uma profunda crise de confiança, em que já não sabemos no que ou em quem confiar. E daí vem o maior e mais complexo risco: as emoções suprimem o debate racional, e tudo o que requer calma, escuta, análise e contexto perde-se num emaranhado de nós, numa vida digital cada vez mais saturada.

Vivemos em tempos em que a verdade, essa bússola civilizatória, parece ter sido sequestrada por algoritmos, renderizada em pixels e vendida em tempo real por um batalhão de pessoas e empresas que pouco se importam com as consequências de se publicar uma mentira. Entramos num terreno onde os fatos importam menos do que as emoções que provocam, e onde a credibilidade se constrói não pela veracidade, mas pela viralidade, instantaneidade e imediatismo.

Se antes a mentira precisava de um esforço para se sustentar, hoje ela é automatizada. Vídeos hiper-realistas gerados por Inteligência Artificial circulam como munição em guerras híbridas, confundindo a opinião pública, manipulando afetos, distorcendo narrativas e criando um exército de pessoas incapazes de pensar. É como se cada um escolhesse as verdades que lhes causam menos desconforto, em vez de confrontar a realidade, mesmo que as evidências estejam ali, escancaradas.

Na política, discursos que apelam ao medo ou ao orgulho nacional são frequentemente baseados em afirmações jogadas ao vento, mas emocionalmente poderosas. É o que vemos nos discursos anti-imigração, presentes nas últimas eleições portuguesa e norte-americana.

Ao mencionar números e fatos comprovadamente inverídicos, lideranças de extrema-direita inflamaram ainda mais os ânimos do cidadão comum, fortalecendo e ampliando discursos xenófobos que, no fim das contas, só acirram disputas ideológicas que distanciam as nações do próprio conceito de democracia. Não quero nem imaginar o quão complexo serão as eleições 2026 no Brasil…

No contexto geopolítico, em que assistimos dos nossos telefones diariamente ao genocídio de crianças palestinas, há quem acredite e defenda o discurso de que aquelas vidas nada importam. Nestes casos, a emoção é despertada não pelo fato de serem crianças em desespero, feridas e famintas, o que certamente me comove mais, e espero que a você também. Mas sim porque há, por trás, um discurso estruturado de que aquelas crianças “têm de morrer” para se combater um único inimigo.

Neste caso, o inimigo é constituído de várias “verdades”, que perpassam a compreensão de boa parte das pessoas aqui no Ocidente, por envolverem períodos históricos aos quais muitos sequer tiveram acesso nas aulas de História na escola. E, talvez por isso, há quem acredite que tudo começou em outubro de 2023.

Em uma guerra ou numa eleição, minutos de desinformação podem significar perdas irreparáveis. O problema não está só nas tecnologias, mas na estrutura de poder que as molda. Empresas que desenvolvem essas ferramentas de IA operam sob uma lógica de lucro e disputa por atenção. Governos, por sua vez, ora se omitem, ora se aproveitam.

Estamos vendo o nascimento de um novo complexo militar-informacional, em que vídeos falsos podem ser mais letais do que mísseis reais. Seja na Ucrânia, na Faixa de Gaza, no Sudão, em Israel, no Irã ou nos vídeos de 30 segundos que invadem nossos imaginários quotidianamente, o campo de batalha já não é territorial, mas sobre qual verdade será escrita na história da humanidade.

A pós-verdade redefine também a forma como pensamos o jornalismo. Não basta mais reportar os fatos; é preciso disputar a realidade. Checagem, curadoria, transparência e neutralidade, princípios básicos do jornalismo, tornam-se armas de resistência. Mas será suficiente?

Arrisco dizer que boa parte dos leitores dos jornais não acessa o link na bio do Instagram para tentar procurar a notícia na íntegra, abrir o link, ler e assimilar a informação, para então voltar aos comentários. Parte das pessoas baseia-se apenas na imagem e sequer lê a legenda. Não será a hora de o jornalismo repensar como apresenta as notícias no feed?

A pós-verdade, ao contrário do que se pensa, não é apenas sobre mentir. É sobre criar um ambiente em que a verdade se torna irrelevante. E isso, talvez, seja o maior risco para a democracia global: um mundo onde não importam as evidências dos fatos, mas o que cada um tem para si como verdade.

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