— Os velhos morrerão, e os jovens haverão de esquecer — garantiu a colonos judeus que se assentaram em terras palestinas e se inquietavam com a rebelião dos expulsos.
Estava errada. Os velhos foram morrendo, sim. Mas não sem antes passar às gerações seguintes os nomes e as lembranças de um vilarejo, um teto, uma oliveira perdidos. Enquanto houver herdeiros desse mapa da memória palestina, o apego ao chão e ao direito de nele viver continuarão a ser repassados aos mais jovens. Ou, como escreve a tunisiano-britânica Soumaya Ghannoushi, especialista em política do Oriente Médio, “enquanto houver crianças, a Palestina vive”.
Um quarto de século atrás, o jornalista Charles Enderlin, da emissora France 2, relatou ao mundo a morte de um menino palestino, Muhammad al-Durrah, de 12 anos, nos braços do pai, vítima de saraivada de balas atribuídas a disparos de soldados israelenses. A cena exibida tinha 55 segundos, enquanto o total filmado, porém jamais divulgado, dura 27 minutos. Ela fora captada pelo câmera Talal Abu Rahma, correu mundo e gerou indignação global, tornando al-Durrah mártir e símbolo cultuado da luta palestina. Hoje, amontoam-se análises documentais e versões contraditórias impedindo que se chegue a uma conclusão inequívoca do ocorrido. Ainda assim, o que pareceu ser a imagem de uma única criança metralhada até morrer nos braços do pai incendiou o mundo.
Hoje? Apesar dos números citados acima, do streaming ininterrupto de brutalidade militar contra a vida humana, vegetal ou animal de Gaza, o mundo se esconde atrás de princípios declaratórios.
— Enquanto houver crianças, escreve Soumaya Ghannoushi, as que não morreram caminham descalças pela terra arrasada, crianças de braços finos carregando irmãos ainda menores, agarrados ao que resta da família. Algumas estão cobertas de cinzas, já não choram, estão em choque. Outras gritam por nomes que não respondem. Não há segurança em Gaza, não há silêncio, não há pausa. Há apenas movimento: de fugir, de enterrar, de fugir mais. Que tipo de guerra é esta que produz uma geração de crianças sem pernas? Que Estado trava este tipo de guerra e lhe dá o nome de autodefesa?
Hoje a Faixa de Gaza tem o maior número de crianças amputadas per capita do planeta — amputações muitas vezes realizadas em condições aberrantes, sem anestesia e à luz de lanterna, como consta dos inúmeros relatórios produzidos por equipes médicas internacionais. Um número obsceno dessas crianças feridas teria sólidas chances de vida se transferidas para instalações e cuidados apropriados.
Segundo dados de um fundo assistencial com sede nos Estados Unidos (PCRF), há mais de 5 mil crianças em Gaza à espera de aprovação de Israel para ser evacuadas. Outras vezes são os países de excelência no tratamento infantil que se fazem de surdos. O Reino Unido governado pelo trabalhista Keir Starmer demorou 17 meses para aceitar receber crianças palestinas feridas — e, mesmo assim, apenas duas meninas até agora.
— Este não deveria ser comemorado como um momento de orgulho nacional, e sim de desonra nacional — desabafou Omar Abdel-Mannan, um dos médicos envolvidos na operação.
Em comparação, o mesmo Great Ormond Street Hospital londrino recebera mais de cem crianças ucranianas também vítimas da guerra. Se conseguirem sobreviver, tornar-se jovens, talvez alcançar a cidadania num mundo inglório, as crianças de Gaza não haverão de esquecer. Não esquecerão o que não fizemos.

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