Nesse ano de 2013, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística, saíram do País 128.108 portugueses. Os anos de chumbo da austeridade pesavam-nos nos ombros. Muitos tiveram de procurar trabalho fora para fazer face a dívidas ou, simplesmente, porque as profissões para que foram formados não lhes garantiam por cá trabalho estável e bem pago. Muitos eram enfermeiros ou professores. Mas também havia os que iam para trabalhar num armazém ou numa caixa de supermercado. Lembro-me de que foi exatamente esse o trabalho que a mãe de uma amiga teve de aceitar quando, já passados os 50 anos, a crise a apanhou de frente e a obrigou a pegar nas malas e ir para Londres.
Conheço várias histórias pouco glamourosas desses anos de emigração. Como a de um casal que chegou a Londres com 20 euros no bolso e teve de viver num quarto partilhado, num susto constante perante a possibilidade de ficarem sem as poucas coisas que tinham levado. Começaram a servir às mesas e a trabalhar em eventos e foram subindo numa economia que lhes parecia mais aberta à ascensão social do que este país pequenino em que quase todos os empregos se arranjam à força de se ser amigo ou primo de alguém.
Nesses anos de aperto, eu trabalhava como jornalista, com um salário magro, que não me permitia o luxo de viver sem a ajuda dos pais para pagar uma renda que na altura já era insuportável, mesmo para quem, como eu, estava bem acima do miserável salário mínimo nacional da época.
Muitos dos colegas que comigo andaram no ciclo e no secundário pegaram nas malas e saíram, alguns deles com bolsas de doutoramento. Outros, como eu, foram-se aguentando por cá, em trabalhos mal pagos, à custa de terem uma rede de apoio familiar, suportando os cortes que a troika impôs.
Isto não aconteceu sequer há 20 anos. Hoje, os adolescentes começam a pensar nos países em que querem estudar ou trabalhar, ainda antes de acabarem o liceu. A emigração passou a ser vista como uma “fuga de cérebros”. Ficar é quase sinónimo de falhanço. Nas famílias da elite passou a ser de bom tom dizer que se tem um filho em Londres e outro em Xangai. E os meninos são educados em Inglês, enquanto os pais olham para as listas de universidades estrangeiras e pensam para onde será melhor enviar os petizes para lhes garantir um futuro dourado.
Aquela porteira que a Rita Blanco encarnou era, em 2013, uma memória caricatural, desenhada para provocar o riso em portugueses que continuavam a ser emigrantes, mas se viam já acima dos comportamentos serviçais de uma geração de gente que fugiu à miséria, passando a fronteira a salto.
A verdadeira gaiola dourada não é a das personagens desse filme. É aquela em que vivem as gerações atuais, que têm na vantagem da mobilidade global a prisão de procurarem um futuro longe das suas famílias e referências. Talvez isso não lhes pareça pesado, porque a sociedade é cada vez mais individualista e as referências estão cada vez mais atomizadas e descaracterizadas como um lounge de aeroporto. Mas não deixa de ser uma prisão, que os condenará a uma vida de párias afetivos, perdidos num Inglês que, por mais que o falem, nunca será a Língua Mãe, longe da sensação de rede e pertença.
Estes são os que hoje partem. Mas como são os que daqui fugiram – e fugir é o verbo certo – nas décadas de 70 ou 80? Como são as porteiras e os pedreiros, que começaram por viver em bairros de barracas nos arredores de Paris? Aqueles que em miúda me habituei a ver em agosto chegar à aldeia dos meus avós, falando um francês ostensivo, chegados nos Mercedes estacionados à porta de casas tipo maison, também elas tão ostensivas e extravagantes quanto era necessário para afastar o fantasma da pobreza?
Não tenho dados nem estudos sobre aquilo em que se terão transformado, porque eles são uma espécie de ângulo morto da História. Quando muito aparecem nas reportagens antes dos jogos da Seleção. Eles não nos interessam, porque não casam bem com a narrativa dos mais qualificados de sempre, que saem para empregos de sonho, empreendedores e sofisticados, que temos a miragem de atrair com baixas de impostos, mas que não voltarão nunca, a não ser talvez para umas férias ocasionais na Comporta, porque foram programados para outros voos e, lá está, têm poucas referências que lhes deem a fome do regresso.
Vi há pouco um programa num canal francês em que alguém dizia que os emigrantes portugueses em França eram como salmão. Tinham o instinto de voltar sempre a casa. Estes novos emigrantes são peixes de aquacultura.
Quanto aos que partiram há décadas, dizia, não tenho estudos nem dados, mas intuo que estejam hoje mais franceses ou suíços do que nunca. Olhando com susto a vaga de imigração, feita de gente de peles mais escuras e religiões diferentes. Repetindo o preconceito de que foram vítimas, sem ver nisso qualquer contradição. Afinal, eles, sim, eram trabalhadores. Os outros não. Os outros nunca são como nós. E é por isso que são outros.
Haverá quem tenha mais estudos e dados que eu para refletir sobre tudo isto. Mas quanto mais penso no assunto, mais me convenço de que toda a conversa sobre imigração não tem nada que ver com a imigração. Tem que ver com as ideias que temos sobre nós e sobre os outros. E como, estando continuamente em competição por tudo, continuamente confrontados com a escassez e a precariedade de tudo, até das relações humanas, sentimos uma segurança especial em agarrarmo-nos ao que é conhecido e atacarmos o que nos é estranho, sobretudo se sentirmos que, ainda assim, estamos numa posição de superioridade.
Tive há pouco tempo uma conversa numa rede social com uma pessoa que insistia na indignação com os subsídios que os imigrantes recebem. Foi quando desisti de contrariar a falsa ideia que tinha sobre os apoios a que essas pessoas têm direito que consegui que a conversa desatasse um nó, enquanto se ia queixando do acesso que têm essas pessoas aos serviços públicos.
Perguntei-lhe, então: “Quer saber de um apoio a imigrantes que é uma vergonha e de que ninguém fala?”. Nenhuma reação. Avancei: “Todos os anos damos uma borla de 1700 milhões de euros a residentes não habituais. Estes imigrantes ricos só pagam 20% de IRS e têm um poder de compra que fez disparar o preço da habitação”. Um coração em resposta. “Quando quiser procurar os culpados, olhe para cima. Não olhe para baixo”, insisti. E, nesse instante, alguma coisa mudou. O meu interlocutor concedeu que “a culpa não é deles”, “das pessoas que vêm procurar uma vida melhor”. A culpa, concluiu, seria de PSD e PS. E eu com isso já consigo acabar bem a conversa.

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