terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Uma atração fatal

Entra para a história universal do grotesco a autodúvida escatológica do ex-presidente na reunião de 5/7/22: "Como é que eu ganho uma eleição, um fodido como eu? Deputado do baixo clero, escrotizado dentro da Câmara, sacaneado, gozado, uma porra de um deputado". De fato, um atordoante engano, que começa a desvelar-se pela notícia de que mais de mil pessoas com mandados de prisão pelo 8/1 fizeram doações por Pix à anomalia. Segundo a pesquisa Quaest, 43% das pessoas não veem dedo dele na invasão. Ele já convoca para manifestação em fevereiro.

Viável a hipótese de atração fatal. Num best-seller sobre a Guerra ("O Buraco da Agulha", de Ken Follet), os espiões alemães na Inglaterra são descritos como "gente inútil", velhas solitárias, fascistas loucos e criminosos insignificantes, com algo em comum: a atração por Hitler. Como os vândalos do 8/1, massa de manobra barata.


Nesse gênero ficcional, dados históricos costumam ser verossímeis. Exceto aquele juízo de inutilidade. Na realidade, os comandos ingleses que degolavam sentinelas alemães no deserto africano eram recrutados nessa arraia-miúda social. Os "insignificantes" tornavam-se matadores. Dada a oportunidade, pode-se viver a atração por monstro como licença para assassinar. Plenitude hobbesiana: o homem é o único animal que assassina (outra é a lógica da fera, que mata por fome ou território).

Entender o empoderamento da insignificância exige enxergar o povo real e não derivações de um proletariado idealizado como classe histórica. O povo recém-descoberto à luz das redes sociais, do gnosticismo bronco imiscuído em organizações de poder e do tropismo para a tirania não tem a ver com a ideologia do trabalho sob as formas do capital, e sim com o que a sociedade civil exclui.

Esse segmento sempre existiu como plebe, ralé, lumpen, ou seja, estratos marginalizados e investidos de rancor, abaixo do ordenamento culto que norteia a divisão social. A subjetividade política não mais se deduz da sociedade de classes. Mesmo nos surtos populistas, há surdez à linguagem popular.

A atual ultradireita tem ouvidos abertos. Em princípio, porque não há diferença emocional entre ela e a insignificância cívica: uma massa tosca em que o indivíduo, além do círculo íntimo, não sabe mais ao certo quem é ele mesmo. Mas ouve de espertalhões que é um combatente da "liberdade". De miseráveis a bem-nutridos, fica patente a atração comum por modulações caracterológicas de Hitler, emblema cívico-militar do extermínio. Ou impulsão infanto-midiática para um Godzilla arrasador. É fenômeno impermeável à razão liberal, com "monstruário" alternável: proscritos reciclando lixo político, candidatos poluindo a civilidade.

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