sábado, 3 de fevereiro de 2024

Esse eu conheço!

Salta aos olhos a trivialidade da expressão acima. No entanto, quanto mais a usamos, menos penetramos em seu significado. Veja como ela pouco diz traduzida para o inglês, justamente porque, como diria Gilberto Freyre, ela — como o carnaval — é um “brasileirismo”.

É um “conhecer cultural” inscrito no nosso inconsciente. Na escondida hierarquia das nossas relações sociais, e no modo como as vivenciamos.

Todos conhecem X, mas nem todos podem dizer com orgulho, revelação ou desprezo: “Esse eu conheço!” — o que equivale a revelar um elo pessoal. Um laço instaurador de um conhecimento íntimo, cotidiano e familiar. Tudo o que socialmente faz diferença, porque afasta o demônio do informal e do impessoal que não sabe quem somos.

Realmente, nossa aversão à impessoalidade chega às raias da repulsa. De tal modo que a regra universal é tida como desgraça ou castigo, jamais como regulador informal de um hábito ou costume.


Como o tal sinal vermelho que fechou justamente “contra” mim! Ouvi esse absurdo numa pesquisa sobre o trânsito, uma esfera social que — como a economia ou o Direito — opera por meio de normas gerais que valem para todos, inclusive para quem tem carro importado ou “se acha” melhor, mais rico, mais importante e, por nobreza autoatribuída, é dispensado de seguir os hábitos “deprimentes” como entrar numa fila (veja-se o livro “Fila e democracia”, Editora Rocco, escrito com Alberto Junqueira).

O vandalismo pode ser visto como um clone perverso dos privilégios abusivos das elites que — para começo de conversa — imaginam não cometer crimes e, se criticadas, sentem-se vítimas de mentiras, tramoias, má-fé e, como bem definiu nosso primeiro mandatário, “mancomunações”.

Aliás, um lado meu quase diz “macumbas”, reveladoras dessa naturalidade de seguir certos costumes, mas achar absurdo cumprir leis que são formalidades reguladoras de costumes, como as normas do trânsito ou as regras de comensalidade ou de controle financeiro. Como não arrotar, roubar o Erário ou, exceto no carnaval, mijar na rua.

Leis e costumes devem ser coerentes, mas temos leis que inutilmente proíbem o avunculato — numa demonstração notória do “esse eu conheço” — e, assim sendo, trago-o de volta, apesar de sua desonestidade ou incompetência.

Eis um conhecer que desmonta qualquer sistema fundado na norma do prêmio ao mais competente e de justiça ao criminoso. Pois a competência — essa inimiga da incapacidade de sanar a pátria desenhada para ser roubada — exclui os que Nélson Rodrigues chamava de “bestas quadradas”, e eu tenho testemunhado como “burros doutores”...

Mas o pior é que todos são “conhecidos” daquele “eu” que é o dono dos donos do poder. Do mandão geral que não erra e de quem todos puxam o saco, naquele cordão que jamais termina, como diz a marchinha de 1945, criada por Roberto Martins e Eratóstenes Frazão. Marchinha definitiva como teoria da esfera política brasileira. Um “marchar” revelador de como o “cordão” ou partido dos puxa-sacos (apadrinhados, compadres, companheiros etc.) dão vivas a seus maiorais e, no outro verso, crava a vergonhosa verdade que estão nos impingindo: a interminável repetição como apagamento da História: Quem está na frente é passado pra trás, e o cordão [seria melhor dizer partidos] dos puxa-sacos [dos esses eu conheço!] cada vez aumenta mais.

Como eu disse — puxa vida — há 45 anos, em “Carnavais, malandros e heróis”, Editora Rocco, o carnaval ritualiza nossas verdades verdadeiras. Pois em sua forma, ritmo e discurso, em sua aliança entre o legal e o impessoal, no consentimento festivo da competição que todos entendem, ele aponta como não conseguimos escapar das repetições que uma estúpida polarização formaliza. E, de quebra e lambuja, desmascara quem são as eminências e excelências que — à direita e à esquerda, em cima e embaixo — reinam entre nós.

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