A busca pela diferenciação dos estilos de vida é a marca registrada da concorrência de massas. Desgraçadamente para a maioria dos aspirantes, pobres e remediados, os impulsos para acompanhar os hábitos, gostos e gozos dos bem aquinhoados se esboroam nas angústias da desigualdade. A maioria não consegue realizar seus desígnios, atolada no pântano da sociedade de massa. Os ganhos propiciados pela valorização da riqueza financeira sustentam o consumo dos ricos e, simultaneamente, aprisionam as vítimas da crescente desigualdade nos circuitos do crédito. No afã desatinado de acompanhar os novos padrões de vida, a legião de fragilizados compromete fração crescente de sua renda no endividamento.
Hannah Arendt abordou, em As Origens do Totalitarismo, as transformações sociais e políticas na era do capitalismo tardio e da sociedade de massa. A economia dos monopólios promoveu a substituição da empresa individual pela coletivização da propriedade privada e, ao mesmo tempo, engendrou a “precarização” do trabalho. A isso juntou-se a conversão ao regime salarial das profissões outrora conhecidas como liberais. A operação impessoal das forças econômicas produziu, paralelamente, o declínio do homem público e a ascensão do “homem massa, cuja principal característica não é a brutalidade ou a rudeza, mas o seu isolamento e a sua falta de relações sociais normais”.
Trata-se da abolição do sentimento de pertinência, sem a supressão das relações de dominação. “As massas surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cujas estrutura competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas quando se pertencia a uma classe. O fato de que o ‘pecado original’ da acumulação de capital tenha requerido novos pecados para manter o sistema em funcionamento foi eficaz para persuadir a burguesia alemã a abandonar as coibições da tradição ocidental… Foi esse fato que a levou a tirar a máscara da hipocrisia e a confessar abertamente seu parentesco com a escória.” Para Arendt, a escória não tem a ver com a situação econômica e educacional dos indivíduos, “pois até os indivíduos altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos movimentos da ralé”.
Arendt escreveu sobre o totalitarismo no século XX e ressaltou a importância da esfera pública, na qual se formam os consensos pelo livre debate de ideias. O único remédio contra o mau uso do Poder Público pelos indivíduos privados está na constituição de um espaço público capaz de avaliar os procedimentos de cada cidadão, submetendo-os à visibilidade. Quando as opiniões são bloqueadas pela intimidação e desqualificação sistemáticas, a meritocracia das ideias sofre um grave dano e o debate democrático escapa às normas da razão e pode ser manipulado.
Em sua configuração atual, o capitalismo escancara a incapacidade de entregar o que promete aos cidadãos. A celebração do sucesso colide com a exclusão social. O desemprego promovido pela transformação tecnológica e pela migração da manufatura para as regiões de baixos salários tromba com a igualdade de oportunidades.
A pressão competitivo-aquisitiva desencadeia transtornos psíquicos nos indivíduos utilitaristas-consumidores. Os trabalhos de destruição da subjetividade iluminista são realizados por uma sociedade que precisa exaltar o sucesso econômico e abolir o conflito. Nesse ambiente competitivo, algozes e vítimas das promessas irrealizadas de felicidade e segurança assestam seus ressentimentos contra os inimigos imaginários, produtores do seu desencanto. Os inimigos são os outros: os imigrantes, os pobres preguiçosos que preferem o Bolsa Família e recusam a vara de pescar, comunistas imaginários etc.
As normas sociais da concorrência utilitarista que guiam o sujeito pós-moderno levam à morte o indivíduo iluminista de Adam Smith, aquele consciente de sua liberdade e empenhado na preservação de sua autonomia. Ele foi substituído por um indivíduo depressivo em seus insucessos e frustrações, sempre preocupado em retirar de si, com doses maciças de Prozac, a essência de todo o conflito.
No livro The Mass Psychology of Fascism, Wilhelm Reich assegura que a mentalidade dos destrutivos de 8 de janeiro é a mentalidade do “homenzinho”: escravizado, anseia por autoridade e, ao mesmo tempo, é rebelde. Não é coincidência que todos os aspirantes a ditadores, como Jair Bolsonaro, tenham surgido no meio reacionário do homenzinho.
A rejeição pós-moderna é mais profunda porque, de forma devastadora, erodiu os sentimentos de pertinência à mesma comunidade de destino, suscitando processos subjetivos de diferenciação e (des)identificação em relação aos “outros”. E essa recusa do outro vem assumindo cada vez mais as feições de um individualismo tosco, agressivo e antirrepublicano.
Na Genealogia da Moral, Nietzsche não hesita em afirmar que “o grande perigo para os homens são os indivíduos doentios, não os maus, não os predadores. Sãos os desgraçados, os destruídos, os vencidos de antemão – são eles, são os fracos que mais solapam a vida entre os homens, que envenenam e colocam em questão da maneira mais perigosa nossa confiança na vida e nos homens”. Os aforismos de Nietzsche exclamam protestos conta as virtudes do cristianismo, contra o ressentimento e a má consciência dos fracos, mergulhados na mediocridade da sociedade de massa.
A “psicologização” utilitarista da existência, diz Roudinesco, avassalou a sociedade e contribuiu para o avanço da despolitização, filha dileta do que Michel Foucault e Gilles Deleuze chamaram de “pequeno fascismo da vida cotidiana”, praticado e celebrado pelo indivíduo ressentido, ao mesmo tempo protagonista e vítima de um processo social que não compreende. O pequeno fascismo desliza sorrateiro para a alma de cada indivíduo, sem ser percebido, ainda que continue a simular a defesa dos sacrossantos princípios da família, dos costumes e da religião.
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