Junto ao tapume da construção, formara-se um grupo de populares, falando pouco, em voz baixa. A obra parara. Mas, das imediações, vinha o mesmo ruído de serra e de elevador transportando material, em outras obras que nada tinham com o caso.
O caso era de Sebastião Raimundo (como informou em três linhas, na manhã seguinte, o jornal), que trabalhava no sétimo andar e, descuidando-se, caíra ao solo. Aí viveu ainda o tempo necessário para que o telefone mais próximo chamasse a Assistência, e a ambulância chegasse, verificando o óbito. Como não havia mais nada a fazer, deixou-se o corpo na mesma posição à espera de outro veículo, que o transportasse ao necrotério. Algumas horas depois, era removido.
No intervalo, curiosos procuravam ver, e não viam. O rapaz tombara dentro da área da construção, e a portinhola do tapume estava cerrada. Apenas, pelas frinchas, podia distinguir-se um trecho de cadáver, e logo depois nem isso, pois ele foi recoberto com um lençol tirado ao barracão dos trabalhadores, junto à obra. Acenderam-se as velas de costume.
Os comentários na calçada eram vagos, nem havia muita substância para eles. O acontecimento fora dos mais simples: falta de cinto de segurança. Somente, como entre o morto e os vivos se levantava um muro de madeira, o primeiro adquiriu um halo de mistério, que a exposição crua não sustentaria. E os olhos queriam ver, porque essa é a função dos olhos, sem embargo da pena que causava a morte do rapaz, ou mesmo servindo à pena, que costuma nutrir-se de visões.
Alguns se quedavam sempre, ora colando o rosto às tábuas, ora contemplando a ossatura do prédio e imaginando as circunstâncias da queda. Outros, ao fim de minutos, mostravam-se menos pacientes, e seguiam a seu destino, mas havia os que voltavam, pensando melhor. Eram velhos cobradores de associações de caridade, porteiros, lavadores de carro, entregadores de pão, crianças. E, ainda, pequeno-burgueses que aguardavam lotação. Moças de maiô, que desciam para o mar, detinham-se um instante, indagavam, iam entristecer, mas os companheiros as chamavam, insofridos, depois de verificarem por sua vez que não havia nada a observar. Nada: a não ser o tapume pintado, com a tabuleta da firma, e uma notícia de morte, que se perdia entre as solicitações da manhã.
Transeuntes cismam longamente diante de dois automóveis amassados na rua, com traços de sangue, ou sem isso; a ideia de desastre os fascina, e a de morte lhes desperta sentimentos que dormitavam sob a necessidade de viver; diante dos ferros retorcidos, registram a proximidade de perigos que os roçaram com a asa, mas que, caprichosamente, foram escolher outras vítimas. Aqui, porém, não há objeto visível. Compete à imaginação trabalhar mais, para criar a simpatia e o terror, que interrompem o curso monótono das coisas, e nos restituem a nós mesmos, tornando-nos conscientes e solidários com o mundo.
É preciso que alguém desabe do alto, para que operem essas forças profundas. Não conhecíamos a pessoa, e amanhã já a teremos esquecido, mas nesse instante em que tomamos conhecimento de seu risco no ar, também morremos um pouco e nos vemos estatelados, à espera do lençol e da vela acesa. À noite, chegando em casa, contamos: Imagina, vi um homem morto na rua. E assim, espraiando-se em círculos por uma porção de casas, à hora do balanço do dia, essa morte rigorosamente anônima se presta, por isso mesmo, a criar em nós a impressão pessoal de morte, em que se condensam outras experiências mais diretas, antigas e abandonadas; em que entra o pressentimento de experiências futuras, para as quais instintivamente nos preparamos. Tudo isso demora um minuto, ou pouco mais, de silêncio, mas conta.
A obra não podia ficar suspensa indefinidamente, e logo recomeçou, arrastada. Os trabalhadores viam lá embaixo a superfície alva, formando pequenas elevações. Tocou a sineta para o almoço. Foram descendo e passando a pequena distância do corpo, olhando-o de banda. Pegaram das marmitas e comeram, calados.
Carlos Drummond de Andrade, "Fala, Amendoeira"
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