Mas Lian é irredutível: os árabes não podem frequentar a mesma piscina, aliás, não podem viver sequer no mesmo sítio. O melhor é enfiá-los em autocarros e depositá-los nos países vizinhos: Egipto, Líbano, Síria… Melhor, melhor é atirá-los ao mar, continua a rapariga que entretanto conquistou um aliado na turma, é Asir, cujo irmão foi ferido enquanto cumpria o serviço militar. No próximo ano serão eles a ir para as Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla inglesa).
A sala de aula grita quase em uníssono para que se atirem os palestinianos ao mar. O professor ainda argumenta que aquela terra já estava ocupada quando eles, judeus, lá chegaram; e lembra que na Alemanha nazi, a primeira proibição a que os judeus foram sujeitos foi precisamente a frequência das piscinas. Então, não foram metidos em autocarros, mas em comboios, para morrerem. Mas nenhum dos argumentas chama os alunos à razão.
São aqueles miúdos que, em poucos meses, terão treino militar e terão armas nas mãos, que não conseguem perceber que o que o seu governo está a fazer foi o que fizeram aos seus avós e bisavós; que, por exemplo, a Faixa de Gaza funciona como o gueto de Varsóvia, onde tudo o que entrava e saía era decidido pelos alemães, tal como hoje, tudo o que entra e sai de Gaza é decidido por Israel — esta comparação é minha, não do professor.
Ainda não terminei de ver A Lição, uma série de seis episódios que começou, na RTP2, poucos dias antes de o Hamas entrar em Israel e matar indiscriminadamente porque, desde o fim-de-semana passado, que a televisão tem estado ligada nos canais noticiosos e tudo o resto parece irrelevante. Desde que vi, pela primeira vez, os ataques do Hamas ao festival de música — onde perderam a vida mais de 260 jovens de várias nacionalidades, e desapareceram talvez mais de uma centena, que terá sido raptada e mantida em cativeiro pelo grupo terrorista —, que tenho dificuldade em dormir.
Naqueles rapazes e raparigas vejo os meus filhos, os seus companheiros e amigos. “E não nos vês na Faixa de Gaza?”, perguntaram-me os meus filhos, em diferentes momentos. Sim, respondi de imediato. Consigo ver-nos, a todos, de um lado e do outro. A sermos vítimas de um governo ditatorial que devia ter previsto e evitado o que aconteceu; e a sermos vítimas diárias desse mesmo governo, que decide se abre ou fecha a água, se liga ou desliga a luz, se podemos ou não podemos atravessar a fronteira para irmos trabalhar —; e reféns do Hamas, de um lado ou do outro da fronteira.
“É uma sorte o lugar onde nascemos”, diz com alguma constância a minha filha, que viveu dois anos fora, e cujas amigas de mestrado são de muitos cantos da Europa e do mundo. A ucraniana cuja melhor amiga era russa e deixaram de se falar quando a guerra rebentou; a russa que tenta ser amiga de todas e todas a evitam; a indiana de um estado de maioria islâmica que sofre com as leis nacionalistas de Modi — confessou ontem, numa troca de mensagens, que o que o Hamas fez só contribuiu para a demonização dos muçulmanos na Índia; a egípcia que frequentou uma das melhores universidades norte-americanas, mas tem dificuldade em arranjar visto para trabalhar na Europa por causa da sua nacionalidade; a norte-americana que antevê uma guerra civil no seu país, por isso, prefere ficar deste lado do Atlântico; a brasileira que ama a segurança da Europa, sobretudo dos países nórdicos; a colombiana…
Que sorte termos nascido em Portugal, sim, mas não confiemos na sorte. É preciso estarmos atentos. Quem votou em Netanyahu foram os israelitas; quem votou em Modi foram os indianos; quem votou em Trump foram os americanos; quem votou em Bolsonaro foram os brasileiros, etc., etc.. Há que ensinar os mais novos a compreender que há um poder que temos nas nossas mãos, há que saber ler, ver, ouvir e interpretar para usarmos correctamente esse poder, para não repetirmos erros antigos ou recentes.
Lembro-me de nas aulas de História, no secundário, perguntarmos ao professor como é que o Holocausto tinha acontecido sem que ninguém tivesse movido uma palha. Como vamos responder aos nossos filhos quando nos fizerem exactamente a mesma pergunta: onde é que estávamos, o que fizemos quando Israel decidiu não dar alternativa a um povo e bombardeá-lo?
E voltemos ao festival de música trance. Um adolescente português, que veja os vídeos sobre o que se passou quando os militantes do Hamas invadiram o recinto, pode facilmente identificar-se com aqueles jovens que dançam, que se divertem, que são obrigados a fugir, e tomar um partido. É mais fácil imaginar-se no corpo de um jovem israelita com um ar saudável do que de um palestiniano sujo do pó das bombas que caem. Por isso, cabe-nos a nós pais, ajudá-los a compreender que aquelas crianças e jovens não são animais, como apelidam vários ministros israelitas, mas são vítimas do Hamas, assim como de Israel; que não têm como sair dali, por mais que as Nações Unidas o implorem, que Israel comporta-se exactamente do mesmo modo que o Hamas. A diferença é que o primeiro é um Estado supostamente democrático, enquanto o segundo é um grupo terrorista, que cresceu com a complacência de Israel. Também os jovens israelitas, bem como as famílias mortas e sequestradas foram vítimas de parte a parte.
É importante saber o que está a acontecer no mundo. E o mundo entra pelos telefones dos nossos filhos, sem filtro, sem que tenhamos poder sobre isso, desconhecendo se o que vêem é ou não é informação fidedigna. É importante sentarmo-nos e contextualizarmos o que se está a passar. Explicar-lhes por quanto já passou um rapaz ou uma rapariga que tenha hoje 14 anos, em Gaza; que quando nasceu já era refugiado, que sobreviveu a quatro confrontos com Israel, que quando as IDF entram naquele território matam indiscriminadamente; que o mundo ocidental não olha da mesma maneira para um palestiniano e para um israelita, quando todos deviam ser iguais, ter os mesmos direitos e deveres. É importante ensinar-lhes a ter empatia, a ser solidários, a agir.
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