domingo, 24 de setembro de 2023

Refugiados do clima

No discurso do Estado da União – que não passou de um enumerar elogioso das medidas tomadas pela atual Presidente e a sua equipa, num claro lançamento de recandidatura –, Ursula von der Leyen tentou passar com um discurso redondo ao largo da crise dos refugiados.

Esta semana, porém, não lhe restou outro remédio senão vir a terreiro falar do “elefante na sala” perante mais um desastre ambiental.

Em menos dum mês, dois acontecimentos naturais de grandes proporções provocaram, como era de prever, uma nova onda de deslocados.


Marrocos (com cerca de três mil mortos) e a Líbia (com o esmagador número que pode chegar aos 25 mil) irão enfrentar um inverno que fustigará os sobreviventes e os arremessará rumo ao desconhecido, na esperança de sobreviver.

A vaga ainda não se faz sentir em toda a sua dimensão porquanto os dramas são ainda muito recentes, mas não restam dúvidas nem tão pouco é difícil antever o êxodo que dai resultará.

A solução proposta pela srª presidente da Comissão Europeia, depois de anos sem conseguir colocar em prática uma real política de migração e asilo europeia, é, mais uma vez, musculada.

A solução proposta pela srª presidente da Comissão Europeia, depois de anos sem conseguir colocar em prática uma real política de migração e asilo europeia, é, mais uma vez, musculada.

Para tal, afirma, lançará mão da polícia de fronteira europeia, a FRONTEX, de forma a “devolver aos países de origem” todos os que cheguem às costas europeias e que não reúnam os requisitos para serem considerados refugiados. Faz ainda mais uma promessa, tantas vezes já quebrada, de ajuda suplementar a Itália e, sobretudo, a Lampedusa que sofrerá este impacto em primeira mão.

Isto no que se refere à Líbia, pois que, em relação a Marrocos, estou em crer que a tal rota do Algarve que não existe acabe por ser a grande porta de entrada.

A Srª van der Leynen não está completamente errada no que se refere ao controlo da entrada destas vagas humanas na Europa. Naturalmente que ninguém pretende uma Europa de portas escancaradas nem a transbordar de população sem condições. Mas estes dois cenários estão muito longe da realidade e não é sério nem humano utilizá-los para justificar a total incapacidade da Europa em lidar com o assunto a uma só voz e de maneira eficaz.

Como também não é sério dizer-se que com medidas musculadas que “empurrem” pessoas em desespero para lugares sem futuro à vista seja forma de combater o tráfico de seres humanos e o contrabando de migrantes. Medidas semelhantes e recentes mostram exatamente o contrário e acentuam a degradação cada vez maior da solidariedade.

A velhinha Convenção de Genebra definiu “refugiado” como alguém com “receio fundamentado de perseguição” por força duma série de circunstâncias devidamente enumeradas.

No entretanto, o tempo passou e o mundo tornou-se muito diferente. O maior inimigo das populações em regiões deprimidas é a alteração climática e essa não consta como razão que faça perigar, física ou mesmo moralmente, e como tal não torna ninguém elegível como refugiado! A figura de refugiado climático não existe na lei. Apenas na natureza.

Como tal, aos guardas de fronteira, mais não resta senão acompanhar os barcos de volta à costa Líbia ou simplesmente ficar a olhar sem agir, deixando que o mar se encarregue de resolver o assunto.

Nem uma palavra sobre apoio ao retorno, ou à fixação das pessoas através da cooperação na reconstrução das zonas atingidas.

A Europa que temos enxota como se fossem insetos os que, muitas vezes por culpa das políticas externas da própria União, sucumbem a catástrofes naturais ou guerras fratricidas.

Já parámos para pensar o que sucederia se fossemos nós também vítimas de tais fenómenos imprevisíveis?

Será que podemos afirmar, sem qualquer dúvida, que as nossas eclusas e barragens aguentariam um desastre semelhante às inundações na Líbia? Quantas cidades ficariam submersas? Quantos seriam os que fugiriam dessas regiões?

E o “grande sismo” que tem povoado os nossos pesadelos desde há séculos, que resultado teria?

Os apoios de primeira linha seriam essenciais, mas não suficientes, para o “dia seguinte”, o momento em que é preciso retomar a vida, tratar da família, alimentá-la, dar-lhe um teto, prover-lhe educação e saúde.

Com que apoios contaríamos?

Ah, sim, a Europa seria solidária com os seus. Mas… quem são os seus? Quem definiu, e em que momento, a cor, o credo, a língua ou o país dos que devem ser salvos?

Oiço já os coros dos que afirmam que a “caridade começa em casa”.

Então façamos mais um exercício de imaginação e pensemos no que sucederia se uma calamidade com a dimensão das inundações na Líbia atingisse a Península Ibérica e toda a Europa Central. Onde ficaria a casa europeia?

Se não assumirmos que o mundo é a nossa casa, estamos todos condenados a sermos refugiados mais cedo ou mais tarde.

E enquanto a Europa não for mais que um mercado de burocratas em gabinetes almofadados, nunca será uma União.

Até por isso as eleições europeias são as mais importantes dos próximos anos. Elas irão definir os conceitos de solidariedade e união, de pertença e igualdade, de partilha. Irão esclarecer se sobreviveremos como bloco, não apenas económico ou estratégico, mas sobretudo como farol de humanismo e liberdade.

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