quinta-feira, 22 de junho de 2023

Restaurando a nobreza

É revoltante tomar conhecimento do Projeto de Lei que criminaliza quem “discriminar pessoas politicamente expostas”. Além de seu conteúdo despudoradamente despótico, revelador de um manifesto espírito de fidalguia, ele é impreciso.

De saída, cabe perguntar o que, para seus autores, significa ser uma “pessoa politicamente exposta” numa democracia. Seriam os professores, os padres, ministros e rabinos que pregam suas crenças, os que escrevem nos jornais e opinam contra ou a favor de algum assunto ou indivíduo, na tentativa de clarificar o que ocorre na esfera política? Quem não seria “politicamente exposto” num sistema cujo atributo inviolável é o direito de manifestar opiniões no sentido de tornar mais justo e equilibrado o cenário coletivo? Se, a partir de Montesquieu, Rousseau, Jefferson e Madison, consolidou-se uma cidadania aberta ao par igualdade e liberdade, quem não seria uma “pessoa politicamente exposta”?

Seria possível, num Estado Democrático de Direito, não ter papel político e assim ficar “exposto” como um ativista de determinadas preferências? Quem então seria esse vitimado “politicamente exposto” de que fala a lei, senão todo cidadão que, em qualquer arena, discuta, critique, acuse, denuncie ou simplesmente opine e analise o grande palco coletivo?

Pelo que entendi, esse projeto tem como objetivo discriminar para cima ou distinguir “políticos profissionais”. Os que vivem da política e fazem parte da imensa e doentia máquina do Estado brasileiro e que, como legisladores, já são discriminados (e como!!!) não como vítimas, mas por seus escabrosos salários (num país onde seus eleitores passam fome), regalias, prerrogativas, foro e formidáveis privilégios.

O que mais chama a atenção deste modesto e cancelado estudioso do permanente e ileso elitismo (de direita e esquerda) nacional é sua arquitetura moral. É a exibição, agora manifesta, de uma “ética de condescendência” que rotineiramente legisla em causa própria, ao lado da tentativa de hierarquizar mais claramente o sistema, sacralizando juridicamente o mandonato brasileiro.

Essa lei não chega do nada. Muito pelo contrário, ela é mais um aborto desta barafunda político-jurídica em que nos metemos, pois tal excrescência nada mais é do que a legalização do “você sabe com quem está falando?”.

Se aprovada, ela criminalizará o direito de discordar e de exercer a cidadania, impedindo os “comuns” que elegem os “politicamente expostos” de honrar os papéis de servidores para os quais foram eleitos. Horroriza saber que a Câmara tenha engendrado uma lei que bloqueia justamente um dos elementos-chaves da democracia: o direito de representação digna e coerente.

Num outro nível, trata-se, como indica o título destas indignadas linhas, de uma real e reacionária tentativa de restauração da nobreza. De um corpo social e juridicamente acima dos cidadãos comuns. Uma “ordem” protegida das vigilâncias igualitárias responsáveis pela invenção reacionária do popular VSCQEF como ritual. De um segmento singular, sujeito a leis privadas (privilégios) extensivas aos integrantes de suas dinastias. Eis o familismo, o velho patriarcalismo e o adorado baronato de volta, estabelecendo por lei que “políticos expostos” podem fazer todas as falcatruas, dispensar todas as normas éticas porque, como nobres, estão acima e isentos das normas deste horrível igualitarismo chamado democracia!

Restaurada a nobreza, já temos rei, rainha e corte. Será, talvez, um pouco triste dispensar o eventual VSCQEF, porque os novos nobres, eleitos pelo povo pobre, desvalido e faminto, surgirão em toda a sua corrupta grandeza, devidamente emblemados a ouro e prata, Chanel e BMWs, de modo que todos saberão quem são e o poder de que dispõem: o poder de impedir a mudança.

Afinal, ficar no mesmo lugar neste mundo globalizado, mas em plena destruição, já é alguma coisa...

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