segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Degradação acelerada

Já era visível a olhos nus a brutal explosão de moradores de rua nos grandes centros urbanos. Bastava olhar para as barracas instaladas nas praças e calçadas das cidades ou ler os cartazes de papelão – verdadeiros outdoors da fome – expostos nas mãos de pessoas em condições de vulnerabilidade, postadas nos semáforos das avenidas. Ou observar as filas de famílias recebendo “quentinhas”, pratos de comida embalados num pedaço de papel alumínio, distribuídas nas ruas por entidades sociais.

Agora, o censo de 2021 realizado pela prefeitura de São Paulo traduziu em números o tamanho dessa tragédia.

Em apenas dois anos houve um crescimento de 31% de moradores de rua na capital paulistana e uma mudança significativa do seu perfil. O número de famílias morando em barracas ou embaixo de marquises quase dobrou no mesmo período.


A expansão vertiginosa desse contingente nas grandes cidades brasileiras se deu por uma razão bastante concreta.

As pessoas perderam emprego e renda, e, sem condições de pagar aluguel, foram expulsas de suas moradias, restando como alternativa a rua. Em outras palavras, o descaso das autoridades em elaborar políticas sociais, a crise econômica e a pandemia levaram as pessoas a descer mais um degrau na escala social. Antes de 2015 boa parte dos moradores de rua vivia em tais condições devido à desestruturação familiar ou dependência das drogas, ou pela associação desses dois motivos.

Com a crise de 2015, quando a “nova matriz econômica” do governo Dilma gerou recessão, inflação e aumento exponencial do desemprego, o perfil do morador de rua começou a sofrer alteração. Isso explica, ao lado da falta de políticas públicas para moradia e assistência social, o salto da população de rua em São Paulo entre 2015 e 2021, quando simplesmente dobrou de tamanho.

Não há um censo nacional sobre moradores de rua, mas certamente o fenômeno se reproduz, em maior ou menor proporção, nas principais regiões metropolitanas do Brasil. Talvez também seja mais exacerbado na capital paulista porque pessoas, em desespero por não encontrar emprego em seus estados de origem, migram para São Paulo com a esperança de resolver sua situação. Como não conseguem, findam por engrossar a população de rua.

O quadro dantesco revelado pelo censo paulistano faz parte de uma acelerada degradação social visível em todos os setores da sociedade e de forma profundamente desigual.

Com a pandemia, nos últimos dois anos houve um aumento do fosso entre o topo da pirâmide social e a base. Como reflexo, quase metade da população do país vive em situação de insegurança alimentar e 20 milhões de brasileiros adultos se alimentam dia sim, dia não. A eles juntam-se cinco milhões de crianças que vão dormir com fome.

O elo mais frágil da cadeia da miséria é a população de rua, prisioneira de um círculo vicioso. Não tem uma moradia fixa por estar desempregada e não encontra emprego entre outros motivos por não ter moradia, um endereço fixo. Quebrar esse círculo exige políticas sociais transversais e articulação entre os três entes federativos – municípios, estados e união.

Seria injusto, e ineficaz do ponto de vista de dar uma resposta ao binômio desemprego-moradia improvisada, jogar toda a responsabilidade nas costas das prefeituras. Isso não significa desobrigá-las de fazer a sua parte para dar uma resposta satisfatória à questão da moradia para a população de rua.

Até pelo seu novo perfil e também pelo fato do fortalecimento da estrutura familiar ser fundamental para uma solução positiva, a política de abrigamento não é a mais adequada. Não há uma alternativa única, mais um leque de opções não excludentes que vai da construção de habitações específicas para esse segmento, passando pelo uso da rede de hotéis populares e de parcerias com instituições laicas ou religiosas, com vistas à reinserção no mercado de trabalho.

É preciso trazer os desabrigados para o orçamento público por meio de políticas sociais vigorosas. Em um país com tantas carências é imperioso definir quais as prioridades orçamentárias, bem como estimular a cultura da solidariedade, mobilizando a sociedade e a iniciativa privada para ser parceira no combate à fome, flagelo que atinge profundamente os moradores de rua.

Dos homens públicos exige-se sensibilidade social. Infelizmente, contam-se nos dedos os que carregam esse atributo, virtude que não é a marca do governo Bolsonaro e que deveria entrar nas contas do eleitor no dia 2 de outubro deste ano.

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