quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Marco temporal vem a calhar para governo que vê índios como estorvo

Não começou no governo Jair Bolsonaro a discussão a respeito da adoção da tese do marco temporal como vinculante para a demarcação de terras indígenas, decisão fundamental para o futuro do Brasil que, de tão intrincada, o Supremo Tribunal Federal pode de novo adiar nesta quarta-feira.

Mas foi neste governo que esse tema virou mais uma daquelas bandeiras que o presidente brande para se contrapor de forma sempre brutal a qualquer direito de minorias com que não tem qualquer empatia nem qualquer compromisso como governante.

O marco temporal virou um passaporte para Bolsonaro impulsionar uma política de subjugar os povos indígenas e lhes tirar direitos, e é essa a dimensão que o julgamento do STF adquiriu, com a maior mobilização pela vida já organizada em Brasília por representantes de várias etnias.



Foi ainda no julgamento da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, concluída em 2009, que a tese do marco temporal ganhou corpo, incluída entre 19 condicionantes apresentadas pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito ao voto histórico de Carlos Ayres Britto que reconhecia a demarcação contínua da área no Estado de Roraima.

Um parecer da Advocacia-Geral da União, no governo Michel Temer, vinculou toda e qualquer demarcação de terra indígena àquelas condicionantes.

Em resumo, a tese propugna que o direito às terras indígenas assegurado pela Constituição teria a própria promulgação da Carta como marco. Ou seja: para ter assegurado seu direito inalienável às terras, os índios teriam de comprovar estar nelas antes de 1988.

Os defensores dos povos indígenas argumentam que a relação desses povos originários com seu território vai muito além dessa definição arbitrária de tempo. Trata-se de uma “relação cosmológica, antropológica”, como sustentou Samara Pataxó, coordenadora jurídica da Articulação dos Povos Indígenas em recente entrevista à jornalista Renata Lo Prete.

Mais: sustentam que, ao tornar obrigatória a tese do marco temporal, o Supremo ensejará uma extrema judicialização de reservas já demarcadas e a paralisação de novas demarcações (desejo confesso, sempre repetido por Bolsonaro), além de potencializar os conflitos violentos em áreas em disputa.

O voto do relator do julgamento, Edson Fachin, reverte a decisão de 2009 e a jurisprudência, que tem validado o marco temporal como critério.

No mesmo sentido, de amplo reconhecimento ao direito incondicional dos povos originários às suas terras, vai o texto do artigo 231 da Constituição. Ali não se fala que aqueles direitos valem apenas para quem já está nas terras. Da mesma forma, várias das condicionantes de Menezes Direito abraçadas pelo parecer da AGU não resistem a ser cotejadas com o texto da Constituição.

Uma pena que, na prorrogação de um julgamento histórico como o de Raposa Serra do Sol, os ministros tenham concordado com um adendo que acabou por relativizar aquilo que eles mesmos reconheceram com tanta altivez.

Ao celebrar a vitória da demarcação contínua daquele território (e não em ilhas, como era a tese da ocasião para tentar retirar direitos dos índios), o então ministro celebrou que a Corte estivesse dando “o mais sonoro e rotundo não ao etnocídio”. De fato. Mas, ao aquiescer com tantas e tão amplas condicionantes, aquela formação do STF nos trouxe até este novo impasse.

O provável adiamento não retira a polêmica da sala, nem fará com que os indígenas se desmobilizem. Cabe ao STF analisar o caso no contexto de tantas e tão graves ameaças ao direito à existência dessas etnias e de minorias em geral no Brasil. Uma tecnicalidade não pode servir de aval para que se cometam novas e possivelmente cabais violências contra os índios no Brasil, que este governo enxerga como estorvos ao desenvolvimento, a ser removidos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário