quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Mãos irresponsáveis

A condescendência das autoridades da Organização das Nações Unidas (ONU) com o presidente Bolsonaro, permitindo que assumisse o púlpito para fazer o discurso de abertura da sessão inaugural sem estar vacinado, não se justifica, pois, como ficou comprovado, ainda não há segurança de que quem já teve Covid-19 esteja protegido de ser infectado novamente ou de infectar alguém.

Bolsonaro, do alto de sua ignorância prepotente, disse ao primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que “ainda” não havia se vacinado, mas que sua imunidade estava bastante alta. Não se sabe se o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, “já saiu com o bichinho” do Brasil, como disse o vice-presidente Hamilton Mourão, ou se o apanhou por fazer parte da comitiva de um presidente que menospreza os cuidados básicos e trabalha contra a vacinação, embora a defenda da boca para fora nos fóruns internacionais.

O Brasil levou uma comitiva enorme, mas completamente inútil para a reunião da ONU em Nova York. Não havia nada marcado para ninguém, a não ser passear de avião e ouvir o discurso do presidente Bolsonaro. É impressionante que ainda nos comportemos dessa maneira, reafirmando nossa regressão atual a republiqueta de bananas.

Além do mais, tanta gente junta acaba disseminando o vírus, e dois componentes da comitiva pegaram Covid-19, uma resposta do destino aos negacionistas. Queiroga foi também muito irresponsável ao replicar um post sugerindo que a vacina CoronaVac não tem efeito, sendo ela a mais usada no país.


O quarto ministro da Saúde na pandemia parecia ter encontrado um equilíbrio entre o respeito à ciência e o negacionismo de Bolsonaro, mas vê-se agora que o presidente é muito mais resiliente que seu ministro, que aderiu ao comportamento bárbaro da tribo que no momento ocupa o governo brasileiro. O gesto obsceno que fez aos que protestavam na porta do hotel em Nova York não se justifica, a não ser como demonstração de lealdade ao presidente, que gosta desses arroubos.

A decisão de suspender a vacinação de adolescentes, numa atitude aparentemente de precaução, mas que na prática demonstrou sua subserviência às manias de Bolsonaro, foi o ponto de não retorno de Queiroga à normalidade. Resolveu aderir de corpo e alma ao negacionismo, e o único gesto de sensatez que ainda mantém é o uso de máscara.

O retorno à política de vacinação de adolescentes, que será determinado pelo presidente Bolsonaro, é apenas mais uma humilhação das muitas que os ministros da Saúde têm enfrentado. Os que, como Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, tinham uma reputação a preservar pularam fora do ministério. Os que, como o general Pazuello e o atual Queiroga, prezam mais o cargo que a reputação permanecem engolindo sapos.

A Anvisa determinou quarentena para todos os integrantes da comitiva, e o presidente estará isolado nos próximos dias. Se fosse possível fazer a medição de quantas pessoas foram contaminadas pelas mãos irresponsáveis de Bolsonaro, teríamos uma avaliação real da consequência direta desastrosa de sua irresponsabilidade. Não apenas nos “cercadinhos”, mas também na sua passagem por Nova York, disseminando o vírus.

O que temos até agora, porém, já é suficiente para que a CPI da Covid possa apresentar um relatório tenebroso. O que era um exagero de retórica política, chamá-lo de genocida, passou a ser uma acusação baseada em fatos e apoiada por uma comissão de juristas, pois os experimentos médicos feitos sob inspiração do governo estão comprovados, como no depoimento do diretor-presidente da Prevent Senior.

Quando, no início da gestão de Pazuello, o governo resolveu alterar a metodologia da contagem de mortos na pandemia por imaginar que havia supernotificação da doença, já tinha em mente manobras como as da Prevent Senior, que registrava pneumonia em vez de Covid-19 para reduzir o número de óbitos. Vemos agora que havia uma subnotificação, como os organismos médicos suspeitavam, não apenas pelas mortes não registradas nas regiões mais pobres do país, mas, com requinte de crueldade, em hospitais que, sob os auspícios do governo, maquiavam para baixo a taxa de mortalidade.

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