Este pequeno insight na visita a Auschwitz serve agora como explicação para o ódio que se exerce contra todo homem e toda mulher que ousa pensar em um país transformado em memecracia – uma sociedade dominada por memes que circulam instantaneamente com cancelamentos ou falsos endeusamentos. Enxergar além destas imagens e frases chapadas se tornou um crime a ser punido.
A ideia de que todo intelectual que não repete o beabá político do momento é um comunista, um bon-vivant, um parasita, um perigo para a nação desenvolveu uma energia antípoda entre os equipamentos públicos e a inteligência nacional. Instituições que antes contaram com grandes nomes de nossa cultura, tanto da erudita quanto da popular, hoje estão nas mãos de burocratas despreparados.
Como é possível constatar isso?
Pela troca constante de direções em diversos órgãos culturais e educacionais. Alguns já estão no seu sexto dirigente, em dois anos e pico de governo. Um índice de rotatividade que lembra o de hotéis. Nunca antes a ideia de que o cargo é passageiro foi tão literal. Virou um modismo de falsa humildade (e de cafonice) dizer estou como diretor(a) disso ou daquilo. O tempo foi acelerado, a pessoa tem que se apresentar assim agora: até o presente momento ainda estou tal coisa.
O principal papel da classe intelectual e artística é o de divergir. E não se pode dirigir equipamentos culturais divergindo das palavras de ordem. Para chegarmos a este estado de depreciação de todo um vasto grupo, que é o que o Brasil tem de melhor, suas mentes criativas, procede-se um linchamento de toda pessoa que pense a realidade.
Se não bastasse esta negação de artistas e intelectuais, tão atingidos profissionalmente pela pandemia, a reforma tributária traz à baila o imposto sobre o livro. A alegação que se propaga é de uma hipocrisia a toda prova. A de que pobre não compra livro. Quem compra livro, então, seria uma classe abastada que não trabalha e tem tempo para ler. Ou seja: sujeitos não produtivos. Além de atacar diretamente as editoras, que já enfrentam dificuldades para vender bons títulos, compromete ainda mais a sobrevivência dos escritores. Desde os anos 1990, o autor brasileiro, nos mais diversos gêneros, começava a ter condições de ser apenas escritor – e este apenas significava escrever para jornais e revistas (que reduziram espaços a tais colunistas), dar palestras e participar de eventos (que, em crise pela demonização das leis de incentivo, agora estão praticamente suspensos), entre outras tarefas, como organizar livros e fazer traduções. O imposto sobre o livro é mais uma volta no parafuso com o propósito de silenciar os intelectuais, obrigando-os a procurar outras ocupações que lhe roubem o tempo de escrever. Como muitos têm uma carreira nas universidades públicas brasileiras, isto também explica o ódio contra tais instituições e a tentativa de controle de professores e pesquisadores, que são permanentemente desqualificados pelos grupos hegemônicos.
Operou-se um divórcio litigioso entre a classe artística/intelectual e a classe dirigente, e quem sai em prejuízo é o país. Pois o escritor é um ser criativo por excelência. Na sua narrativa Vamos Comprar um Poeta (Dublinense, 2020), o ficcionista português Afonso Cruz mostra como os versos aparentemente sem sentido deste ser tido como supérfluo geram soluções estratégicas para a economia. Ele define poeta, a partir de uma das acepções dadas por Samuel Johnson, como “alguém que inventa”. Contra uma manada que repete memes, precisamos defender os criadores: “A ficção salva-nos. Literalmente. Por imaginarmos, conseguimos saber o que fazer”, afirma Afonso Cruz. O atraso das políticas públicas do atual governo vem do fato de o comando de muitas instituições estar com pessoas que não sabem o que fazer. Sabem somente obedecer.
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