sábado, 13 de fevereiro de 2021

Mapinguari

Noite de lua, no terreiro, os homens procuram se esquecer do assunto eterno que é a falta de chuva e recordam histórias do Amazonas. Recordam é modo de dizer: desses todos que estão aí nenhum foi do tempo em que se ia para o Amazonas, e o que sabem ouviram de pais e avós. Contam os casos clássicos de boto e curupira, e hoje saiu em cena um bicho pouco falado, o mapinguari.

Bicho não, que o mapinguari tem a figura de um caboclo gigante, 3 metros de altura, pés espalhados e braços enormes. Anda nu, o corpo azeitão e pelado é liso, sem o menor arranhão de mato. Cabelo só tem na cabeça, curto e ruivo, deixando à vista as orelhas pontudas.


Mapinguari só come coisa viva. O gosto dele é morder na carne quente e sentir o sangue esguichar. Come guariba e outros macacos que apanha nas árvores, com muita fome, é capaz de se agachar à beira d'água tentando pegar algum peixe de couro; de escama não gosta. Mas a comida predileta do mapinguari é mesmo gente e, só quando lhe falta carne de homem, come a dos bichos. Quando caça, imita pio de pássaro e voz humana; mas só sabe dar uma fala fininha, esquisita, que mal engana a distância.

Pois um dia saíram para o mato dois seringueiros, e um deles se chamava Luís. Pouco além se separaram, tomando cada um a sua estrada de trabalho. Mas não estavam afastados, tanto que um ouvia a machadinha do outro a abrir o corte do leite na seringueira.

Passou-se um tempo, e o que não se chamava Luís reparou que já não escutava a batida do companheiro. Prestou atenção - nada. Por um momento, teve a impressão de que ouvia a pisada de bicho grande quebrando o mato, mas devagar, cuidadoso. Teve medo e gritou: "Luís!"

E como se viesse de longe, uma vozinha fina respondeu:"Luíííís!"

Ai, por que tão fina a voz de Luís? E por que dizia Luís em resposta, se ele que chamara não se chamava Luís? Assustado, insistiu: "Luís!" E de novo o gritinho, como um eco: "Luís! Luíííííís!"

O caboclo aí compreendeu que era o mapinguari imitando a sua voz. Não quis saber mais de nada e, morrendo de medo, meteu-se pelo mato, trepou numa árvore alta e se escondeu entre os galhos.

Foi em tempo. Porque lá vinha o mapinguari pela vereda, vagaroso, olhando de um lado para o outro, caçando. Caçando a ele! Debaixo do braço o bruto trazia o pobre do Luís e, de vez em quando, baixava a boca sobre o desgraçado e lhe arrancava uma dentada, um naco da cara, a orelha, uma lasca do peito. Mas entre um mastigo e outro o mapinguari continuava a caçada - parava, escutava e soltava o seu gritinho: "Luíííííííís!"

Afinal desistiu, deu nova dentada no Luís, que ainda estrebuchava, e se afundou na mata. O outro esperou muitas horas, encolhido lá em cima, até o sol do meio-dia ficar bem alto; então escorregou da árvore e saiu correndo em procura de casa.
Rachel de Queiroz

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