terça-feira, 29 de dezembro de 2020

As ondas



“O dia ondula amarelo como as suas colheitas.” “O dia ondula amarelo como as suas colheitas.”

O que lhes ocorre quando leem essas palavras? O dia ondula. A luz ondula e tudo que ela toca oscila junto. Mas não de forma uniforme. A luz ondula amarela e seus reflexos no que ela toca não são todos iguais. Alguns refletem a cor com mais intensidade, a gota de orvalho na folha da árvore, os campos de trigo, a memória, a imaginação. Outros apenas deixam que a cor lhes toque suavemente e se vá: o tronco, as nuvens, a brisa leve.

Para mim, não há ninguém nessa cena de "As ondas", de Virginia Woolf. Vejo o dia amarelado, os campos de trigo, as árvores aqui e ali. É fim de tarde em minha imaginação, a hora mais ondulante do dia, hora de transição.

Transição. Transições ondulam, nem sempre suavemente. Às vezes irrompem sem aviso prévio, sem prenúncio. Muitas perdas são assim, cristas de ondas que desabam sobre nós sem que tenhamos visto a ondulação que as precede. Nessas horas, abre-se uma fissura no tempo: o que veio antes, o que virá depois, a dor do momento presente. A dor inevitável, dor que precisa ser sentida, que não será ignorada. Dor que uma vez reconhecida como transição, passará a vir em ondas daquele instante em diante. Por vezes mais intensa, por vezes mais suave. Essa dor é amarela. Essa dor vibra. Essa dor não passa, tampouco vira memória. É dor sentida todos os dias, passada a transição que a causou.

Mas transições não se exaurem. Transições são como o dia que ondula amarelo: trazem colheitas. Colhe-se algo da transição. Seja dor, seja alívio, seja desespero, seja esperança.

Nas transições, colhem-se oportunidades também. A oportunidade de algo novo, diferente, a possibilidade de várias possibilidades. Isso é o que se apresenta para 2021. Isso é o que desejo para 2021: um ano que ondule amarelo como as suas colheitas.

O que temos a dizer sobre 2020? Foi um ano de rupturas, foi um ano de transições abruptas, foi um ano de luto. Luto pelas pessoas que o vírus e o descaso do governo federal levaram. Luto pela ausência da fraternidade e da empatia, tão terrivelmente ilustrada nos “e daís” presidenciais. Luto por todos aqueles que voltaram à pobreza extrema. Luto pela falta de consciência em um país de mínimos: Estado mínimo, vontade mínima, razão mínima. Luto pela defesa despudorada de tetos ruídos, políticas econômicas falidas, cabeças embotadas. Luto pela morte do entendimento em favor do conhecimento sem vida, inerte. Luto pelo Brasil de Bolsonaro.

O luto tem estágios que não podem ser atropelados: a dificuldade de aceitá-lo, a indignação, a tristeza, o reconhecimento.

Mas é somente por essa dura travessia que se chega ao outro lado. O lado das ondulações que nos dão conforto e leveza. O lado dos dias que oscilam amarelos em suas colheitas.

Em vez de um olhar retrospectivo para um ano em que experimentamos a ruptura da vida cotidiana e injustiças com peso de vida e de morte, deixo minha homenagem às pessoas que perderam alguém, aos profissionais de saúde, aos trabalhadores que não puderam parar, aos mais pobres, aos vulneráveis, aos que se sentiram violentados pela brutalidade do presidente da República. Em homenagem ao Brasil, às tantas pessoas que tentaram tornar o ano de 2020 menos intolerável, em homenagem a todas essas pessoas deixo a bela imagem:
Monica de Bolle

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