Na hipótese de que seja apenas ignorância, é espantoso que um político que passou três décadas no Congresso e hoje é a autoridade executiva máxima da República demonstre desconhecimento tão profundo do texto constitucional.
O presidente, por exemplo, já declarou que “qualquer dos Poderes” pode “pedir às Forças Armadas que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil”. Fazia referência ao artigo 142 da Constituição, que, na exótica interpretação de Bolsonaro, lhe permitiria convocar as Forças Armadas para intervir em crises e também para atuar como uma espécie de “Poder Moderador” quando há conflito entre Poderes.
O presidente repetiu em diversas ocasiões essa interpretação mesmo tendo sido alertado por especialistas e magistrados de que se tratava de uma leitura estapafúrdia da Constituição. Isso enseja uma outra hipótese: a de que Bolsonaro sabe muito bem o que está fazendo, ou seja, trata de confundir a opinião pública e, em meio a um “debate” constitucional sem sentido, dar verniz de legitimidade a seus propósitos autoritários. Ao mesmo tempo, tenta enredar as Forças Armadas em seu projeto de poder, com o objetivo óbvio de intimidar os opositores.
É por esse motivo que são tão importantes manifestações cristalinas como a do presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, a propósito da absurda interpretação bolsonarista sobre o papel das Forças Armadas. “As Forças Armadas sabem muito bem que o artigo 142 não lhes dá (qualidade) de Poder Moderador. Tenho certeza de que as Forças Armadas são instituições de Estado que servem ao povo brasileiro, não são instituições de governo”, disse o ministro Toffoli.
Sendo o Supremo o intérprete final da Constituição, pode-se dizer que o caso está encerrado, mas tudo indica que Bolsonaro insistirá em sua exegese ardilosa do artigo 142. Afinal, seu objetivo é fazer suas mentiras se transformarem em verdades apenas pelo mecanismo da repetição incessante, a despeito - e muitas vezes à revelia - da realidade.
O presidente usa essa estratégia tipicamente totalitária ao insistir também que “o Supremo Tribunal Federal decidiu que governadores e prefeitos é que são responsáveis por essa política (de impor a quarentena contra a pandemia de covid-19), inclusive isolamento”, razão pela qual ele diz que não pode ser responsabilizado nem pelas mortes nem pela crise. “Não queiram colocar no meu colo”, disse Bolsonaro, numa frase que já se tornou padrão em um governo que não assume responsabilidade por nada.
Parece inútil explicar ao presidente, como já se fez diversas vezes, que em nenhum momento o Supremo atribuiu a Estados e municípios competência exclusiva para lidar com a pandemia. O STF, ao contrário, decidiu que União, Estados e municípios têm “competência concorrente” - isto é, todos os entes da Federação têm de agir para enfrentar a crise, em seus diversos aspectos, “preservada a atribuição de cada esfera de governo”.
O que Bolsonaro queria, na verdade, era ter poder para ordenar a Estados e municípios que ignorassem a pandemia e mantivessem a economia em funcionamento, atropelando não apenas as recomendações sanitárias, mas principalmente o princípio federativo gravado na Constituição. Como teve seu intento autoritário mais uma vez frustrado pelo Supremo, tratou de investir na versão fantasiosa segundo a qual é o Judiciário que o impede de tomar as medidas necessárias para o que o País “volte à normalidade”.
No devaneio ditatorial que os camisas pardas bolsonaristas acalentam, não há verdade senão aquela “revelada” por seu líder. Não à toa, já houve até um ministro de Bolsonaro que demandou a prisão de ministros do Supremo, já que estes ousaram contestar a “verdade” do chefe confrontando-a com a Constituição. Assim, na sua busca por um inimigo objetivo, que todo movimento totalitário requer, o bolsonarismo já encontrou o seu: é a própria Constituição, que reflete não a vontade de seu líder, mas o esforço coletivo de construção de um regime genuinamente democrático.
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