Enquanto isso, no morro e no subúrbio pobre, o Natal não traz quase novidade. Quem não tem cobertor na cama nem panela com castanha no fogo – quem às vezes não tem cama nem fogo, como acontece a muita gente, não encontra no Natal diferença por maior. Talvez só a Missa do Galo, que é de graça – e nem isso, pois dá vexame ir à missa de vestido velho e pé no tamanco. Tempo de Carnaval sempre é mais fácil, basta enfiar um calção ou uma saia de velha, passa tisna no rosto, pega uma lata e um pauzinho, vai brincar do mesmo jeito. Mas em tempo do Nascimento, bloco de sujo é pecado. Não vê que a limpeza Deus amou?
Por isso minha amiga Béatrix Reynal largou de mão a poesia por um pouco e anda tomando providências. Juntando fazenda para roupinhas novas das crianças ao Natal, fazendo questão de que todo o mundo vá de vestido novo à Missa da Meia-Noite, para o galo não beliscar.
Sou mulher de natureza encolhida e tímida e deixo de fazer alguma coisa pelos outros, como seria de meu gosto, menos por secura de coração do que por falta de coragem para agir. Por isso mesmo admiro os que o fazem, os que não temem de bater à porta alheia quando é para o bem de quem precisa. Béatrix, por exemplo: começa arranjando um livro em branco para escrever o nome dos doadores. Fosse eu, logo ficaria indecisa e pessimista, acreditava lá que houvesse doadores em número suficiente para encher aquele livro. Ela porém tem fé na natureza humana, é uma maravilha; logicamente tem fé no livro. E da posse do livro para a descoberta dos doadores, parece que medeia apenas um passe de mágica. E é mágica, é. Telefonar, pedir, rogar, andar a pé, de bonde e de automóvel, até de barca. Saber descobrir quem tem coração mole, que ainda acredita e cumpre o preceito de vestir os nus, quem já não é freguês de outras caridades. Descobrir outras senhoras que se associem à empresa – senhoras que não gostam de cartaz, que trabalham em verdade por amor dos humildes e não para aparecerem nos jornais cinematográficos entregando um saquinho de não se sabe o que, de um em um, bem caprichado e em <em>close-up</em>, à fila infinita de mulheres e crianças que esperaram ao sol e à chuva, o dia inteiro.
Que a minha amiga Béatrix Reynal faz as suas caridades de modo diferente. Para ela o importante é o socorro em si, não é o gesto. Na hora de pedir a fazenda, de arranjar as colaborações, de sair de porta em porta, de se matar de trabalho, medindo, cortando pano, arrumando, embrulhando, empacotando, ela é a primeira. Só na hora de entregar é que ela não aparece. O pano já está aí, os pobres já estão aí, não é mesmo?
Sei que não é com a caridade individual que se alivia a pobreza do mundo. Sei que não é com esmolas que se cura a miséria. Mas que a caridade ajuda, ajuda. Desculpem-me os senhores teóricos, posso estar errada, podem ficar danados comigo. Eu morro, mas digo: ajuda, sim. Vamos calcular que Béatrix Reynal com essa sua campanha do vestido de Natal consiga dar roupa a dez mil crianças. Sei que com isso não as redime da miséria; não as livra do barracão sórdido, não lhes dá escola, nem higiene, nem médico, nem lhes aumenta a ração. Mas enquanto o vestidinho durar, o corpo delas não estará nu. Não sentirão frio, poderão sair sem vexame, terão na sua vida de crianças e pobres aquela preciosa alegria do vestido novo. Façamos as nossas revoluções, decretemos leis, cheguemos ao socialismo, remediemos a desigualdade, como é o nosso sonho e a nossa obrigação.
Mas enquanto isso não chega, pelo menos viva o vestido novo. Mais tarde os meninos que a poetisa vestiu agora não terão nada ou terão tudo, serão vítimas da fome ou senhores do mundo, conforme for o que está para vir. Mas com futuro ou sem futuro, a alegria do vestido novo, isso pelo menos eles armazenaram, isso ninguém lhes tira mais.
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