A proposta de lei erra em todas as linhas. Primeiro, por que aumentar a validade do documento de habilitação? Pelo preço? Não faz sentido. O projeto deveria priorizar a fiscalização dos cursos de motorista. Também nada significa retirar a obrigatoriedade do uso de farol nas estradas. Apenas aumenta o risco nas pistas. Da mesma forma, é risível estabelecer que, em veículos de empresas, multas só podem ser dadas se o motorista não for identificado.
Há pontos ainda mais perigosos, como o de reduzir a gradação da penalidade para motociclistas que transportarem cargas em dimensões e peso acima do normal. Se você vir uma motocicleta conduzindo um armário, tudo bem, não é tão grave, segundo o projeto. Veículos com defeitos de fábrica poderão continuar circulando, e sua documentação não pode ser negada pelos órgãos oficiais, mesmo que o erro seja no funcionamento do freio. É ridículo.
Dobrar de 20 para 40 o volume de pontos para cassar a carteira de motorista infrator é convite à infração. Propor não multar mais motorista que não usar cadeirinha de segurança para transportar crianças é criminoso. A cada ano, 134 crianças de até 9 anos deixam de morrer por usar o equipamento. O presidente quer também acabar com os equipamentos eletrônicos de multas, os famosos pardais. “A multagem (sic) eletrônica vai deixar de existir para o bem dos motoristas do nosso Brasil”, disse o presidente, fazendo demagogia barata com a vida dos brasileiros.
Tão criminoso quanto o artigo da cadeirinha, que chocou o país e deve ser derrubado pelo Congresso, é o que acaba com o exame toxicológico de larga janela para candidatos a motorista profissional ou para a renovação da carteira. Esse exame, que vigora desde 2017, analisa geneticamente os candidatos e determina se fizeram uso de substância tóxicas nos 90 dias anteriores. Se o resultado for positivo, a habilitação é negada ou cassada.
Os números provam a eficiência da lei em vigor. Dados oficiais mostram que veículos pesados, que representam apenas 4% da frota nacional, são responsáveis por 38% dos acidentes nas estradas e 53% dos acidentes com vítimas fatais. Em média, 30% dos caminhoneiros usam drogas estimulantes para dirigir em longos percursos. Segundo a Polícia Rodoviária Federal, houve queda de 38% nos acidentes nas rodovias federais no primeiro ano da lei do exame toxicológico que o projeto de Bolsonaro quer agora revogar.
As seguradoras estimam impacto negativo de cerca de R$ 200 bilhões por ano na economia do país com acidentes de trânsito. Só no primeiro ano da lei, reduziu-se em mais de R$ 70 bilhões a perda econômica derivada de acidentes. Estima-se que o exame toxicológico salvou a vida de 56 mil pessoas apenas nas regiões Sul e Sudeste em dois anos. No mesmo período, 2,2 milhões de motoristas profissionais ou candidatos tiveram suas habilitações cassadas ou negadas.
Presidentes vão eventualmente ao Parlamento levar emendas constitucionais, como a da reforma da Previdência. Projetos de lei são quase corriqueiros e dispensam a presença presidencial na sua apresentação. No ano passado, só a Câmara aprovou 149 deles. E por isso, para defender o elenco de barbaridades contidos no seu projeto, Jair Bolsonaro fez esta visita inusitada ao Congresso na terça-feira.
Houve gente dizendo “oba, o presidente está dando sinais de reconciliação com o Congresso”. “Começou a fase de distensão”, afirmaram outros. Nada disso, o que se viu foi um homem cumprindo sua agenda política, falando apenas com o seu público. Ele fez um gesto a caminhoneiros e a motoristas profissionais, como se estes, aliás, não tivessem filhos.
Ascânio Seleme
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