Quando vi o Cabo Daciolo subir a montanha, anunciando que iria expulsar a maçonaria e os illuminati do Brasil, cheguei a pensar: é uma campanha singular no planeta, um candidato na cadeia e outro caminhando para o hospício. Teosóficos, cabalísticos, neopagãos e rosacruzes que se cuidem.
Mas é inegável que ele tem uma coerência estratégica: quer entregar o país a Deus. Sua atuação parlamentar confirma, pois tentou alterar o texto da Constituição: todo poder emana de Deus, e não do povo.
Semana passada estava lendo por acaso um livro que falava do poder da transmissão oral . Todos os líderes populares do momento se expressam nessa linguagem direta, cheia de incorreções, mas sem a frieza do texto.
Um jornalista estrangeiro queria minha opinião sobre a campanha, baseada em dois nomes: Bolsonaro e Lula. Minha explicação para o Bolsonaro de hoje é a de que ele tenta encarnar duas grandes correntes: conservadores e liberais. Não era liberal em economia, mas se tornou liberal no caminho, unindo-se a economistas e intelectuais que expressam essa tendência.
Embora tenham pontos de convergência, como o respeito à propriedade privada, há um grande potencial de atrito nesse casamento. Na medida em que a economia avança, tende a se internacionalizar, levando a uma reação nacionalista, como a de Donald Trump.
Os liberais partem do indivíduo; os conservadores, da família. Esses pontos de partida potencialmente também conflitam. E digo isso não com a visão de um teórico, mas de alguém que observa a história dos costumes no Brasil.
Tive a oportunidade de andar nas ruas com o senador Nélson Carneiro. Testemunhei como as pessoas lhe agradeciam pela lei do divórcio. Na época, muitos achavam que seria um golpe mortal na família.
Hoje, creio, até os defensores da família tradicional podem constatar as mudanças na estrutura familiar, em muitos casos mantida apenas pela mulher. O próprio Jair Bolsonaro já se casou algumas vezes. A tensão entre o conservador e o liberal existe na própria vida particular do candidato.
Mas é uma aliança que alguns liberais querem. Um grupo chamado MBL, que aparece em inúmeras polêmicas, também tentou construir essa ponte, quando denunciou uma exposição com um artista nu.
Eles diziam que não condenam a nudez em si, mas uma exposição daquele tipo feita com dinheiro público. Buscaram um argumento republicano para estender a ponte entre as duas tendências, tão sonhada por alguns atores: conservar nos costumes, liberar na economia.
Essas tensões já existem no governo Trump. A tendência ao nacionalismo protetor já começa a assustar setores liberais. E, possivelmente, o comportamento pessoal de Trump, sua linguagem vulgar e aventuras com atrizes pornôs não devem ser um fator de orgulho para conservadores.
No campo da esquerda, vejo tensões de outra natureza. O PT foi obrigado a se radicalizar diante da prisão de Lula.
Se a direita já constitui uma espécie de rumo geral, ainda que contraditório, a esquerda liderada pelo PT se fixou na luta para liberar seu líder e, ao adotar um tom mais radical, parece resignada a perder a disputa pela aprovação da maioria. No meu entender, isso não significa um destino inescapável.
Há um caminho alternativo. Longo e difícil. Passaria, em primeiro lugar, por uma autocrítica da roubalheira que houve durante o governo do PT.
Em segundo lugar, de uma visão mais realista da conjuntura, sobretudo nas relações Estado e mercado. Entre os que querem privatizar tudo ou estatizar tudo, há sempre a possibilidade de discutir racionalmente o tamanho do Estado num momento histórico dado.
Finalmente, no campo cultural, das lutas identitárias, é preciso dialogar com as forças majoritárias, sem a pretensão de conquistá-las para suas ideias, mas sim de achar o momento exato de propor mudanças razoáveis, como Nélson Carneiro.
Finalmente, no campo político, era preciso renegar a afirmação de que os fins justificam os meios. Isto significa aceitar as regras do jogo, trabalhar dentro da lei.
Esse ponto é o mais difícil de ser compreendido no momento. Para salvar Lula, é necessário condenar a Justiça.
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