Uma coisa é a sociedade assumir a moralidade pública como bandeira, exigindo que os políticos ajam de acordo com os critérios de honestidade no tratamento da coisa pública – que, justamente por ser pública, não pode ser apropriada privadamente. Trata-se da acepção mesma de República. Outra, muito diferente, consiste em aplicar à política os mesmos critérios que são empregados nos julgamentos de outras ações humanas, visto que a política é o terreno da violência, da intriga e do engano do outro. Trata-se de uma dimensão irrecusável da realidade tal como ela é, devendo ser tratada conforme seus instrumentos específicos.
No caso do governo Temer, por exemplo, temos a velha política sendo utilizada conforme os ditames de uma agenda reformista, transformando o País. Ao assumir, o novo presidente defrontou-se com uma questão estrutural da democracia, atinente aos seus próprios fundamentos: todo presidente governa com o Parlamento que tem à mão. Não é de seu arbítrio escolher a composição do Poder Legislativo. É o jogo próprio das instituições democráticas. Trata-se do exercício da soberania popular. Não nos situamos na esfera da moralidade, mas da política, com seu amoralismo e sua demagogia.
Note-se que a política foi empregada não para contemplar critérios abstratos de moralidade, com suas próprias noções de bem, mas para a realização de outra noção específica do bem, a do bem público, coletivo. Poder-se-ia falar aqui de uma contraposição entre o bem abstrato da moralidade e o bem público da política, por mais que se busque reduzir o alcance dessa diferenciação. Reduzir, porém não anular, pois suas esferas de atuação são diferentes, assim como suas pressuposições e seus critérios.
Nessa perspectiva, o presidente negociou um projeto de reformas, voltado para os fundamentos do Estado e da sociedade, que veicula, por si mesmo, a sua própria noção de bem coletivo e de bem-estar social. O povo clama por moralidade pública, o novo governo não se caracteriza por seguir esses critérios, no entanto, reformas são feitas para tornar possível o bem público, menosprezado pelo governo anterior.
Temos, então, o que pode aparecer como um paradoxo. O presidente da República implementou um moderno projeto de reformas utilizando-se dos velhos instrumentos da política. Poder-se-ia dizer que a “imoralidade” se tornou um instrumento de uma outra conotação ética, a do bem público. O vício prestou serviço à virtude. Ora, o que aparece como um paradoxo desaparece na medida em que os critérios da moralidade abstrata e da política, assim como seus fundamentos e condições, não são os mesmos, seguindo outros parâmetros e pressupostos. O problema só surge quando aplicamos a uma e outra esfera de atuação humana critérios que são, por natureza, distintos.
A política é o terreno do “ser”, da realidade dada, em todas as suas dimensões, incluindo a violência e tudo o que desagrada ao juízo moral. Gostaríamos, certamente, de que as coisas fossem de outro modo, mais eis um dado incontornável de qualquer diagnóstico, análise e juízo. A moral é o terreno do “dever ser”, das construções valorativas, em que entram em jogo critérios do que estimamos que a realidade deveria ser, sem suas fraturas e imperfeições. No mundo real, a ideia de perfeição aparece como sendo algo desejável, um fim inalcançável, porém alguns a estimam como possível, o que transparece nas utopias e nas diferentes formas de messianismo político.
Ora, utopias e messianismo político expressam menosprezo pela realidade, como se esta pudesse ser simplesmente substituída por um movimento de tipo revolucionário que tudo destruiria do existente. Acontece que o mundo do “dever ser” é um mundo inexistente, um mundo de ideias que só encontra sustentação em si mesmo. Cria finalidades e objetivos que têm como fundamento somente a sua própria abstração.
Nesse sentido, o discurso das almas virtuosas pode produzir um efeito retórico para contemplar os amantes da moralidade abstrata, mas é de pouca utilidade quando confrontado com as questões concretas de como governar, conforme as agruras e o cinismo da política. Hegel dizia que a consciência veste aqui a roupagem do que ele chamava de “bela alma”, encantada com sua moralidade pura e sua beleza estética, como se pudesse viver à parte dos assuntos do mundo, onde impera a impureza.
Uma bela alma evita sujar-se com os assuntos do mundo, porém esse segue o seu curso com a sujeira que o constitui. Se permanecer em sua abstração, na subjetividade do lamento, não produzirá maiores consequências políticas, salvo se enveredar para posturas políticas.
No caso brasileiro, temos a especificidade de promotores e juízes que se estimam destinados a uma missão, como se pudessem construir um mundo totalmente novo, partindo do pressuposto de que toda a classe política é “má”, “suja”, a ser destruída e substituída por algo puramente moral. Esse outro, contudo, só existe no terreno das ideias, do “dever ser”. Querer impô-lo pela força de decisões judiciais expressa uma moralidade que se revela sob a forma do messianismo político.
Querer impor um novo mundo por decisões judiciais expressa uma forma de messianismo.
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