segunda-feira, 11 de setembro de 2017

A botija

Nada passou despercebido na Civilização do Açúcar diante do olhar penetrante e da reflexão original de Gilberto Freyre.

Com habitual leveza poética, a Professora Fátima Quintas (Assombrações e Coisas do Além: a convivência entre vivos e mortos na Civilização do Açúcar) destaca a visão freyriana sobre o assunto: “A casa-grande é o ´consciente’ e o ‘inconsciente´ da nossa memória, a pureza e a impureza, a virtude e o pecado, a consagração e a derrota”. A confluência das memórias, diz o recifense de Apipucos: “É um passado que se estuda tocando com os nervos”.

Foi assim que chegaram aos nordestinos, em especial, aos pernambucanos, lendas, fábulas, crendices, superstições, um mundo povoado de vivos e mortos, movido por fantasmas e assombrações.

Durante gerações, nem sempre a história da carochinha era o soporífero eficaz para o sinhozinho. De vez em quando, a mucama usava repertório de lendas e personagens assustadores como papa-figo, mula-sem-cabeça, cumade fulozinha, lobisomem, curupira, bicho-papão. O aconchego da proteção servil abreviava o “pegar no sono”.

Do caldo moído do imaginário popular, aflorou um recipiente de barro vidrado, bojudo, com uma asa – a Botija – objeto que Câmara Cascudo, assim, transpôs do folclore como herança holandesa: “Dinheiro enterrado, o mesmo que botija para o sertão do Nordeste, ouro em moeda, barras de ouro ou de prata, deixados pelo holandês ou escondidos pelos ricos, no milenar e universal costume de evitar o furto ou ladrão de casa de quem ninguém se livra”. (Dicionário do Folclore Brasileiro. Ediouro, 1998).

Pois bem, o Brasil moderno (?) alargou ainda mais o conceito de botija. Com a escala e a velocidade empregadas no assalto ao patrimônio nacional, o mercado ofereceu aos delinquentes “botijas de aluguel”. Tá na foto. 51 milhões de reais armazenados sob o teto de um apartamento alugado. Não há engenharia financeira nem “gênios em derivativos” que atendam à necessidade da lavagem da grana.

Assim, o valor simbólico e real da velha botija não se limita ao espaço entre vivos e mortos que servia para proteger a opulência e alimentar o pecado da avareza. Agora, a botija serve aos vivíssimos! Cofre dos megaladrões. No Recife o boi já voou e cédulas, também. Aposto que tem dinheiro emparedado. Vi todas as temporadas de Narcos. Credo Cruz! É tempo de todos os tráficos. No Brasil, o mais sutil e resistente: o tráfico da influência política.

Gustavo Krause

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