quarta-feira, 9 de agosto de 2017

O Supremo e a farsa do amianto

Em 10 de agosto, o Supremo Tribunal Federal deverá julgar um conjunto de ações relacionadas ao amianto: elas questionam a proibição do material nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Pernambuco, além da capital paulista. Ou seja, o objetivo é voltar a liberar o amianto nestes locais onde leis estaduais e municipais o baniram. E outra ação, esta movida por quem luta pelo banimento da fibra cancerígena em todo o território brasileiro, questiona a constitucionalidade da lei federal que permite o “uso seguro” do amianto no país. Se essa lei for considerada inconstitucional pelo Supremo, será o primeiro e mais importante passo para banir de vez o amianto no Brasil.

Apesar da linguagem burocrática aí de cima, este é mais um capítulo de uma história sórdida que um dia poderá se tornar uma série policial de TV ou um thriller de suspense no cinema, daqueles cheios de vilões de terno e sorrisos corrigidos em dentistas. E aqueles que o assistirem poderão pensar, como acontece quando assistimos a filmes que narram atrocidades históricas: como os cidadãos deste país permitiram que isso acontecesse? Mas é isso, não só deixamos acontecer, no passado, como segue acontecendo, no presente.

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A história do amianto – também conhecido como asbesto – é marcada por falsificações, chantagens, ameaças e mortes de trabalhadores e de familiares de trabalhadores. Uma farsa do século 20 que no Brasil se estendeu para o século 21 porque uns poucos ainda faturam com a morte de muitos. E estes poucos que faturam têm dinheiro para pagar grandes escritórios de advocacia, consultores influentes, cientistas de universidades importantes, que torturam primeiro a ética, depois a ciência, assim como financiar vereadores, prefeitos, deputados e senadores, lobistas e vendilhões de todo o tipo.

O amianto já foi banido de mais de 70 países por ser uma ameaça à vida. É proibido na União Europeia desde 2005. A indústria do amianto conhece os riscos da fibra mineral para a saúde desde o início do século 20, mas como ela dava muito lucro e alguns impérios familiares foram construídos com o dinheiro do amianto, omitiu-se e seguiu produzindo. Quando o escândalo de saúde pública começou a se desenhar na Europa, a partir do final dos anos 70 do século passado, os barões do amianto foram progressivamente recuando lá e expandindo seus negócios em países como o Brasil. Afinal, havia ainda muito mundo onde se ganhar dinheiro antes de ter que recuar por completo. E ainda há.

É o que acontece hoje. A Brasilit trocou o amianto por material não cancerígeno no início deste século, ao calcular que estava na hora de disputar o mercado em outra posição visando o futuro. Mas não resolveu o passivo dos trabalhadores doentes nem respondeu pelos mortos. A Eternit, dona da única mina de amianto no Brasil, a Mina de Cana Brava, em Minaçu, no estado de Goiás, tornou-se a principal defensora do “uso seguro” da fibra cancerígena.

Ninguém se iluda, é uma disputa de negócios. Neste momento, até as pedras sabem que o amianto terminará por ser banido no Brasil. Mas o xadrez segue sendo jogado, parte dele como encenação, para que a indústria consiga as melhores condições e perca o menos possível – e para que a indústria se responsabilize o menos possível pelas vítimas humanas e pela corrosão do meio ambiente. Entre 1980 e 2010, uma pesquisa mostrou que houve 3.718 casos de mesotelioma, o câncer fatal do amianto, no Brasil. Mas seu autor, o pesquisador Francisco Pedra, da Fiocruz, chama a atenção para a extrema subnotificação da doença. Muitos trabalhadores e familiares morrem sem ter o diagnóstico correto e sem que a informação seja registrada.

É fundamental perceber que tanto o número de doentes crescerá quanto a contaminação ambiental persistirá por décadas. O Brasil deverá atingir o pico de mesoteliomas nos anos que ainda virão, já que a doença tem um longo período de latência. E não há nenhum plano para a descontaminação do amianto que está por todo canto, entranhado no país, possivelmente no prédio onde você lê esse texto. Ainda que a produção esteja em queda, o Brasil segue sendo um dos maiores produtores e exportadores da fibra cancerígena. Mas, claro, quando essa história acabar, além das milhares de vidas perdidas, sobrará para a rede pública de saúde e, portanto, para todos nós, pagar o custo do crime perpetrado pela indústria do amianto.

Para compreender como esse enredo se desenrola, vale a pena olhar para o cigarro, uma história que todos conhecem bem. A indústria do tabaco sabia há muito tempo que o produto era cancerígeno. E silenciou. Quando se tornou impossível seguir em silêncio porque os males do cigarro se tornaram públicos e os casos de câncer e outras doenças dispararam, negou. Depois criou produtos que supostamente causavam menos danos à saúde, como o famoso “menos nicotina e alcatrão”, assim como colocou “filtro” nos cigarros. E mais recentemente os cigarros com sabores e o “cigarro eletrônico”. E tudo isso financiando fartamente lobistas, cientistas, médicos, publicitários, marqueteiros, astros de cinema e da TV, advogados e agentes públicos para adiar o desfecho o máximo possível. O cálculo é sempre “o quanto podemos ganhar antes de sermos supostamente vencidos”.

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