quinta-feira, 4 de maio de 2017

Duas narrativas sobre a Previdência

Os números parecem avassaladores. A pesquisa Datafolha, publicada pela “Folha de S.Paulo” sobre a reforma previdenciária, registra reprovação de 71%, contra aprovação de escassos 23%. À primeira vista, a reforma é um fracasso irremediável na arena de batalha da opinião popular. Contudo, a mesma pesquisa oferece os indícios de que, no fundo, o desastre reflete menos a natureza da reforma que a narrativa política na qual está envolvida.

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O governo apostou suas fichas em campanhas de propaganda destinadas a esclarecer os mecanismos do crescente, insustentável, déficit previdenciário. Disse-nos, insistentemente, que as regras atuais chocam-se com a dinâmica demográfica de envelhecimento da população. Explicou-nos, pedagogicamente, que os tempos de contribuição e as idades-limite de aposentadoria, definidos há décadas, refletem as expectativas de vida do passado. Mostrou-nos, à base de estatísticas, que o aumento da participação de idosos na população exige a atualização das regras, sob pena de colapso do sistema de financiamento previdenciário. Nada disso, porém, convenceu 71% dos brasileiros — inclusive, especialmente, os que têm curso superior, grupo no qual a rejeição à reforma atinge 76%. Como interpretar isso?

Reformas previdenciárias são impopulares em todos os países, pois atingem expectativas universais de direitos pecuniários. Mesmo assim, elas avançaram em diversos países europeus, obtendo níveis razoáveis de legitimação política. Na Alemanha, a significativa elevação da idade mínima de aposentadoria decorreu de amplos acordos costurados entre os dois partidos tradicionais (a social-democracia e a democracia-cristã) e as centrais sindicais. O caso alemão é singular: um espelho da notável coesão política de uma sociedade que se reconstruiu a partir das experiências das sucessivas tragédias nacionais provocadas pelo nazismo e pelo comunismo. Mas o impulso reformista manifesta-se, hoje, também na França, um bastião da política corporativa, na forma do surpreendente apoio popular à candidatura de Emmanuel Macron, que promete mexer em sacrossantos direitos trabalhistas e previdenciários. Por que, então, nada similar acontece no Brasil?

Nossa “história profunda” sugere fragmentos de respostas. No país de colonos empenhados em “fazer a América”, o interesse privado suplanta o interesse público. No país de colonos modernizado pelo varguismo, o Estado aparece como fonte universal de oferta de direitos e a elite política extrai sua legitimidade da prerrogativa de assegurar a distribuição de rendas. Por aqui, desprezamos bens públicos de usufruto geral (escolas, hospitais, redes de saneamento, transportes urbanos, parques, museus, bibliotecas), mas agarramo-nos a direitos pecuniários de usufruto individual (aposentadorias, pensões, bolsas, cotas, cestas básicas, passes livres, meias-entradas). FHC, Lula e Dilma esbarraram em muralhas de rejeição, quando ousaram ensaiar reformas previdenciárias. Recusamo-nos terminalmente, portanto, a entender as contas, a acatar as realidades básicas da aritmética?

Os sindicalistas, em particular as entidades do funcionalismo, confrontam a campanha do governo com a tese de que não existe um déficit previdenciário. A aritmética política deles opera por oníricas adições (receitas previdenciárias puramente imaginárias) e espertas subtrações (despesas previdenciárias magicamente descartadas). Há quem simule acreditar nisso — mas 76% dos cidadãos com diploma universitário? As informações do Datafolha insinuam algo diferente: da pesquisa, extrai-se a hipótese de que o erro se encontra na narrativa governista. No lugar da ênfase na lógica atuarial (ou seja, na sustentabilidade das contas previdenciárias), o esforço de persuasão deveria se concentrar nas teclas do privilégio e da igualdade.

Nos gráficos do Datafolha, nítidas maiorias rejeitam as regras diferenciadas para militares (58%), policiais (55%) e professores (54%). Nosso sistema previdenciário está crivado pelas exceções corporativas e contaminado pelo privilégio, beneficiando as castas mais abastadas de servidores públicos. A marca da desigualdade, o signo do favorecimento esvaziam-no de legitimidade política. Sob esse pano de fundo, a reforma projetada pelo governo aparece (justa ou injustamente) como uma conspiração devotada a cobrar das pessoas comuns as dívidas contraídas por um edifício de injustiças. Diante de outra narrativa, o Brasil poderia ser uma Alemanha — ou, ao menos, uma França.

A narrativa, porém, não é uma escolha livre, mas um fruto incontornável das circunstâncias políticas. Um governo eleito sob uma plataforma reformista teria a oportunidade de formular um projeto previdenciário baseado nos princípios da sustentabilidade financeira e da igualdade de direitos. Nessa hipótese, o discurso da reforma confrontaria as resistências sindicais alvejando os privilégios e exceções corporativas. O país não pertence a juízes, procuradores, homens em armas ou professores. Os privilégios são pagos às custas da ruína da educação, da saúde, dos transportes e dos espaços públicos urbanos. A natureza do governo Temer, porém, coloca tal narrativa fora de seu alcance.

Temer não nasceu do voto popular, mas do impeachment da presidente de quem era sócio político. Na falta de legitimidade eleitoral, seu governo depende, exclusivamente, de uma coalizão de ocasião, constituída no ambiente de desmoralização generalizada da elite política. Seu projeto de reforma previdenciária, eivado de exceções, expressa os temores de uma base parlamentar sitiada pelas pressões corporativas. A narrativa que lhe resta está calçada apenas no fraco poder persuasivo da aritmética.

O governo impopular usará sua impopularidade para salvar o Brasil de si mesmo, dizem, esperançosos, uns poucos arautos da reforma. É um teorema curioso, que fala mal da democracia.

Demétrio Magnoli

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