sexta-feira, 28 de abril de 2017

Temer tenta resgatar um sistema que acabou

Não precisa ser esperto ou experto para perceber que o sistema político brasileiro ruiu. Há anos, a estrutura caducava. Agora, debaixo da tempestade, desabou: “O sistema político-partidário no Brasil acabou”, disse Fernando Henrique ao jornal português, Público. Sabe FHC, no entanto, que mesmo antes de seu governo, pencas de problemas já aceleraram sua destruição; o jogo se esgotava. Foi apenas o mico que ficou na mão de Michel Temer.

Nas últimas três décadas, cada presidente da República, bem ou mal, cumpriu uma agenda específica, sem, contudo, mobilizar esforços pela transformação do sistema político. Os defeito e vícios da política nacional são ancestrais: a confusão entre público e privado, o fisiologismo, o clientelismo, a velhacaria estão aí, mais ou menos, desde sempre. O regime militar ocultou problemas, ou antes, os assimilou. A democracia os trouxe à superfície de um mal-estar explícito.

Por incapacidade, impotência, fraqueza ou conveniência, todos os presidentes recentes postergaram a modernização do sistema político. Não podendo enfrenta-los, aliaram-se. Ao contrário do que se fez na economia, não houve esforço transformador nessa área. O sistema político não apenas não avançou, como perdeu substância, liderança e sagacidade. Reduziu-se ao fisiologismo de sempre, tornando-se gradativamente disfuncional. Vale tentar compreender o processo.

Voltemos a José Sarney: sem a legitimidade do voto, o vice de Tancredo enfrentou a Constituinte, o gigante Ulysses, o PMDB e o movimento popular que se robustecia após o regime militar. O presidente não pôde, nem quis, bulir com fogo em casa de marimbondos, sendo ele residente de seu condomínio. Foi em seu tempo que a expressão “é dando que se recebe” saltou das missas para compor o universo político.

Malgrado o desastre inflacionário e mesmo todas evidências de corrupção em seu governo, a principal tarefa de Sarney foi fazer a transição para o regime democrático, evitar retrocessos autoritários; naquele momento frágil, entregar ao país eleições abertas, livres, democráticas foi um desafio. Ele o cumpriu.

Já a agenda de Fernando Collor de Mello — mesmo ele teve a sua — foi o chutar o pau da barraca da economia, denunciar o atraso, rasgar as sedas do protecionismo e dos grupos de interesse e entabular um discurso de abertura e transformação econômica. Em que pese o farisaísmo de sua retórica, Collor foi o mais viril propagandista da modernização, num momento em que força e disposição eram mesmo necessárias.

Na política, no entanto, a arrogância e a autossuficiência do presidente jovem definiram o desastre: Collor desprezou o sistema, mas sua proposta era tão somente substituí-lo por camaradas que nada deixavam a desejar ao que já havia. Nesse campo, apenas colheu a tempestade de inúteis vendavais que plantou. Deu-se o impeachment — o primeiro da série.

O período de Itamar Franco foi curto: vice de Collor, assumiu num ambiente de quase união nacional — muito diferente do atual. Fez enfrentamento corajoso contra Antônio Carlos Magalhães, senador e cacique político à época, porém pouco resultou em transformação. Sua verdadeira obra foi no campo da economia, a partir da nomeação de Fernando Henrique Cardoso, ministro da Fazenda, e da elaboração do Plano Real.

A agenda de FHC também foi econômica: a consolidação do Real, a reforma patrimonial do Estado e a modernização de setores vitais da sociedade. Enfrentou naturais resistências, mas, alertado pela experiência de Collor, percebeu que o econômico só se efetivaria com composição política. Aliou-se ao atraso — ele mesmo admitiria. Usou, sim, o velho “é dando que se recebe”, distribuiu cargos e recursos; em outdoor, sorriu ladeado pela fina flor da corrupção, de então. Mas, cumpriu seus propósitos.

O salto de Lula foi manter o Real, minimizar o “risco PT”, e ir além aproveitando-se do bom momento internacional, amparado em políticas públicas inovadoras. Fez, sim, importante inclusão social. Mas, no plano político, foi outro que assimilou Collor: enfrentar os “trezentos picaretas” — a que um dia se referiu — era temerário, também escolheu compor. Forjou a maioria pela pragmática via da cooptação.

Com o escândalo do mensalão, injetou PMDB na veia; sendo indolor, adquiriu o hábito, tomou gosto, foi tragado pelo vício. Aliando-se ao sistema político, banqueteou-se de sua carniça. Os defeitos do sistema tornaram-se fonte de sua estratégia e ação continuísta. Como forma a manter-se no poder, criou Dilma-Temer a partir de uma costela do sistema.

Não contou com a indocilidade aleatória da pupila. Mais por seus defeitos do que por qualidades, a presidente se debateu teimosa sem compreender, no entanto, processo econômico e sua política — mesmo a pequena. Não soube definir agenda: nem deu sequência à economia, nem rompeu com o sistema. Perdeu-se no caminho, sem concluir qualquer tarefa histórica.

Sem a alternância de poder que o renovasse, que o reestartasse, já no terceiro mandato da série petista, o sistema se calcificava e se enrijecia no fisiologismo e nos esquemas financeiros. Foi a tal da “faxina” — atribuída a Dilma pela imprensa — nada mais do que conflito distributivo de recursos do erário, alerta mais ruidoso da decrepitude do sistema. Como saciar a fome de um organismo voraz?

Michel Temer não tem o aplomb de Fernando Collor; não é Itamar — vide a timidez com que se dá com Renan Calheiros. Embora lhe agrade comparações com FHC, está distante disso. Tampouco possui o carisma e a prestidigitação de Lula. Difere-se, sim, de Dilma; sabe, ao menos, qual sua missão: reencontrar o fio da meada econômica, sem romper a linha tênue do sistema político.

A tarefa histórica que definiu para si mesmo ou, antes, foi definida por Romero Jucá —estancar a sangria. Rompendo com a teimosia de Dilma, retomar a dinâmica econômica de FHC/Lula e manter a política como está. Saldar as contas pela reforma da primeira, com os créditos pelo seguro regresso à segunda. Difícil. Parafraseando o samba, “o sistema não mais existe, ninguém volta ao que acabou; Michel é mais um presidente triste”.

Carlos Melo

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