O cinema foi minha vida durante mais de 30 anos. Parei em 1992 e virei esse cara opinativo que vos fala. O cinema foi o sonho de que os filmes mudariam nossa realidade, até que descobrimos o contrário.
Mas o cinema era nossa fé, nosso credo. Por isso, tenho saudades daquele tempo do Cinema Novo, sim, saudades da tribo de esperançosos que éramos, cumprindo uma missão “histórica”. Justamente agora, quando as imagens nos penetram, inundam nossos olhos e ouvidos é que eu lembro com amor da fragilidade dos filmes antigos e da ideia do “objeto único”, da aura a que eles almejavam.
Hoje o cinema é nu. Está exposto em lojas, feiras e bancas de jornais, está na ponta dos dedos dos insones, está nas TVs, está rodando bolsinha nas ruas. Tenho saudades da sala escura, do cinema dos pobres tímidos, do cinema como ilusão solitária, realidade alternativa que analisávamos noite adentro nos bares. Pouco antes de sua morte, conversei com Louis Malle sobre isso, no Rio – falamos do sonho, da utopia dos anos 60, alimentada pelo “Cahiers du Cinema”, pelos círculos de fumaça dos “Gitanes” sem filtro, saudades do frisson culto das cinematecas. Como era bom esperar por um novo filme de Fellini, e pelo novo Antonioni, e pelo novo Godard... Atualmente, essa “cinefilia” soa quase como um vício sexual; talvez até tenha sido. Havia um mundo secreto, próprio do cinema, que só alguns ainda conhecem.
Não chego a ser um cinéfilo puro. Falta-me o gosto arquivista, o detalhe das fichas técnicas remotas, o mundo das fofocas de Hollywood. Mas tenho amigos que me calam de respeito. Cinéfilo era, por exemplo, o Manuel Puig, o escritor argentino que morou no Rio. Ele sabia tudo de qualquer filme. Outro dia, li um artigo sobre os últimos dias de Puig em Cuernavaca, no México. O relato era uma cena digna dos melodramas B que ele amava. Em sua vida, Puig tinha adotado dois “gays” jovens, que ele chamava de suas “filhas”. Uma delas era Yasmin, “filha” dele com o Ali Khan – pois Puig brincava com a fantasia de ser a Rita Hayworth; a outra, (esqueci o nome) era “filha” dele (dela) com Orson Welles.
Pois bem, uma noite, velando por sua agonia, à beira do leito do hospital, Yasmin achou que Puig já estava em coma. Mas, na esperança de uma melhora, resolveu testar os sinais vitais de sua “mãe”. Segredou-lhe: “Mamãe... ontem eu vi ‘Stella Dallas’, de King Vidor, na TV... Chorei tanto...”. Eis que a “mãe” Puig balbuciou-lhe do leito: “É... a Barbara Stanwick está ótima, mas o John Boles nunca me emocionou muito”. Yasmim, a bichinha cinéfila, caiu em prantos e ligou eufórica para a “irmã”: “Mamãe está melhorando”.
Nessa época, o cinema ainda tinha a tal “alma” que, hoje, desapareceu nos supermercados digitais ou foi soterrada sob a febre de séries na TV – vitória absoluta de Aristóteles. Por isso, me lembrei de Humberto Mauro, que conheci já velhinho. Já contei isso aqui várias vezes, mas a historinha é exemplar.
Quando ele fazia seus filmes dos anos 20/30 nos fundos de quintal em Cataguazes e, depois, na Cinédia, todo amigo que ele encontrava na rua dizia para ele: “Humberto, você precisa ir ao meu sítio filmar a cachoeira que tenho lá! Você vai ver que cachoeira!”. E o Humberto Mauro ficava com aquilo na cabeça: “Por que querem que eu filme cachoeiras?”. Um dia, um jovem cinéfilo (havia-os aos montes) agarrou-o pelo paletó e suplicou-lhe que decifrasse o grande enigma: “Seu Mauro, afinal de contas, diga, qual é a ‘essência’, a ‘alma’ do cinema?”. E o velho Mauro teve a grande intuição e deu-lhe a resposta inapelável: “Cinema, meu filho, é cachoeira! É cachoeira!”.
Essa frase ficou famosa entre os amantes da sétima arte na época. E ela me remete a outra definição, do filósofo Henri Bergson, a quem os irmãos Lumière mostraram sua ainda recente invenção: “Creio que o cinematógrafo será útil para sabermos, no futuro, como os antigos se moviam...”.
Talvez seja esta a “essência” do cinema: registrar a morte comendo a vida. Hollywood é um cemitério de estrelas. São beijos e olhos e corpos embalsamados no tempo da película. Fred Astaire dança no ar do nada, James Dean anunciava sua morte na interpretação de uma melancolia trágica. Sei como dói amar uma morta – eu que me apaixonei por Brigitte Helm em “Metrópolis” e amei as pernas perfeitas de Louise Brooks e Cid Charisse, na necrofilia da sala escura.
Por isso, a ideia de cachoeira é a metáfora melhor. Só o movimento tem de ser filmado. Só as cachoeiras devem ser retratadas na busca de alguma verdade. A grande desilusão do século XX foi a tentativa de capturar a vida incessante em fórmulas racionais que a esgotassem.
Não há uma realidade que se congele. Buscá-la, tanto no cinema quanto na política, é fracasso certo.
Hoje, vemos que quanto mais aberta a máquina do mundo, mais vazia e misteriosa ela se torna. A fome de decifrá-la, digitalizá-la, descrevê-la não a condensa nem explica; ao contrário, dá em tragédia. Hoje, tanto no fanatismo do Oriente quanto na massificação ocidental, vemos esse perigo e desejo.
Na verdade, somos uma cachoeira olhando a outra, e nossas ações têm este fracasso fundamental: por mais que olhemos no fundo das coisas, nunca veremos fim ou início. A cachoeira é a melhor definição do cinema ou da vida.
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