terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O adeus aos fatos e o totalitarismo

Com seus disparates absurdos, Donald Trump virou um símbolo mundial da mentira na política, do desprezo pelos fatos, da infâmia contra jornalistas. Ele não inventou nada disso – a mentira na política é tão antiga quanto a própria política. Mas ele levou mais longe o descompromisso com a verdade e subiu o tom da agressividade contra a imprensa.

Numa escalada ensandecida, resolveu declarar guerra aberta contra a imprensa. Em visita à sede da CIA, logo depois de tomar posse, o presidente da maior potência militar do planeta lançou uma ofensa inaceitável: “Estou 1.000% com vocês. E a razão de vocês serem minha primeira opção é que, como vocês sabem, eu tenho uma guerra em curso com a mídia. Eles estão entre as pessoas mais desonestas da Terra”. Ao usar a palavra “mídia”, Trump se refere à imprensa, às redações independentes e às publicações que investigam os fatos e criticam o poder.


Trump dá todos os sinais de não suportar que alguém verifique se o que ele está dizendo é verdade ou mentira. Ele não lida bem com os princípios mais elementares da instituição da imprensa. Diante da simples ideia de que alguém conteste suas afirmações peremptórias, explode numa ira sem limites. Com a mesma virulência com que segrega os estranhos (e manda erguer um muro na fronteira com o México) e defende a tortura de prisioneiros, ele fustiga em voz alta repórteres e editores. Para Trump, os americanos patriotas são aqueles que acreditam nele, somente nele, e não fazem perguntas. Em sua indústria da mistificação, conta com o auxílio cego de assessores inacreditáveis, dedicados a torcer os fatos em favor do chefe.

Um exemplo disso acaba de acontecer. Como diversas reportagens mostraram que o número de apoiadores presentes à posse de Trump não foi assim tão grande como ele pretendia, sua conselheira Kellyanne Conway declarou (no programa Meet the press, da rede NBC) que a Casa Branca se baseava em “fatos alternativos” para contestar o que a imprensa publicou. Quer dizer: se os fatos não correspondem aos desejos da vaidade presidencial, que se mudem os fatos. Oficialmente. Se os fatos desmentem o poder, que se declarem existentes os “fatos alternativos”.

Diante do despautério, muita gente nas redes sociais se lembra do livro 1984, do escritor e jornalista inglês George Orwell (1903-1950). Em sua obra-prima, Orwell apresenta um regime tirânico que reescreve o passado, altera as fotografias e falsifica os arquivos históricos apenas para dar coerência ao discurso oficial. Para alguns, não poucos, o nível das mistificações promovidas por Donald Trump e sua corte faz lembrar a distopia de George Orwell.

Ninguém mais nega que o quadro político nos Estados Unidos inspira preocupação. Se Trump odeia os jornalistas como diz que odeia, se está em guerra contra a imprensa como diz que está, o “bullying estatal” contra as redações independentes pode se acentuar. Nesse caso, algumas das bases mais essenciais da democracia americana estariam sob ameaça. Uma palavra pronunciada pelo presidente americano é um fato político da mais alta relevância em si mesmo. Se ele diz que a imprensa abriga “as pessoas mais desonestas da Terra”, isso é um fato que trará consequências políticas.

Além de George Orwell, outra personalidade que vem sendo lembrada neste momento grave da democracia americana e das relações internacionais é a filósofa política alemã Hannah
Arendt (1906-1995), que escreveu sobre o totalitarismo. De origem judia, Hannah Arendt refletiu com uma clareza cortante sobre o nazismo e mostrou que os regimes totalitários são aqueles em que cada cidadão se converte num agente a serviço da segurança do Estado. O totalitarismo, portanto, é um autoritarismo elevado a uma potência superior. Arendt também mostrou, como ninguém, que tanto no autoritarismo como no totalitarismo a mentira política é peça indispensável para as técnicas de dominação. Se um líder mente de maneira contumaz e abre fogo contra quem verifica os fatos, está flertando com fantasias totalitárias.

Arendt conheceu bem a cultura política americana. Ao fugir do nazismo, ela se mudou para os Estados Unidos, obteve a cidadania americana em 1951 e morou em Nova York até morrer, em 1975. Num de seus ensaios, Verdade e política, ela demonstra que a política precisa ter base nos fatos. “Fatos e eventos”, diz Hannah Arendt, “constituem a verdadeira textura do domínio político.” Ela não fala das verdades metafísicas ou espirituais, mas apenas da verdade dos fatos, a simples verdade factual. Essa deve ser a base da política. Quando se desvincula dos fatos, a política vira outra coisa: fanatismo. Aí, as pessoas já não ligam para os fatos. Guiam-se apenas pelas convicções e pelas crenças impostas pelo tirano de plantão. E do fanatismo para o totalitarismo, a distância é muito curta.

Hannah Arendt não supõe que os políticos sejam seres angelicais. Os governantes mentem, às vezes até com boas intenções. Já na Grécia Antiga, Platão, um filósofo que abominava os mentirosos, não deixou de admitir que a mentira faz parte da política: “Se compete a alguém mentir, é aos líderes da cidade, no interesse da própria cidade”. Mas nem Platão, nem Hannah Arendt, nem ninguém com um mínimo de juízo imagina que, na democracia, a atividade política possa abrir mão dos fatos. Qual o tamanho da dívida pública? Quantos trabalhadores não têm emprego? Quantos leitos hospitalares faltam no país? Essas perguntas só podem ser respondidas por fatos. Se os fatos são desprezados, toda a racionalidade do sistema democrático se perde.

É por isso que a imprensa é indispensável. Uma de suas funções precípuas é a verificação diária dos fatos. Sem imprensa livre, como a sociedade vai ter parâmetros para saber se o poder está mentindo ou dizendo a verdade? O que sabemos até agora é que Trump não gosta de imprensa. Não gosta porque não quer que ninguém conteste suas verdades prontas e absolutas. Ele xinga jornalistas e se declara em guerra contra a imprensa. Esse negócio não vai dar certo.

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