quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Memórias, fósforos, gatos

Uma noite, acordei sem saber onde estava. Acendi a luz. Eram três da manhã, e aquele quarto não era o meu quarto. Eu estava num hotel, mas que hotel? E em que parte do mundo? Eu não me lembrava de ter feito mala, de ter saído de casa, de ter pegado avião. Na verdade, eu não me lembrava de nada referente àquela viagem — estava a trabalho, estava de férias? O que tinha ido fazer lá? E onde era lá?

Fiquei sentada na cama, ponderando a situação. Não adiantava entrar em pânico. Também não adiantava ligar para a recepção — eu corria o risco de me jogarem numa ambulância e me mandarem para o hospital. Mas que hospital? Onde? E em que língua? E se eu tivesse compromisso logo cedo?

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Dei uma volta pelo quarto, mas nada me dizia nada. Nem podia dizer — detesto aquela papelada que os hotéis espalham, como cardápios e guias de TV, e a primeira coisa que faço quando chego é sumir com tudo. As possíveis pistas da minha localização estavam provavelmente numa gaveta ou no alto do armário. Abri uma ou duas, não encontrei nada, e aí me lembrei de que o computador poderia me ajudar a matar a charada. Liguei a máquina.

“Adoro o Windows Phone e amo a Nokia há muitas e muitas luas, mas fiquei perturbada com a notícia da compra da finlandesinha valente pela gigante americana...”, dizia a página do dia do meu blog.

Oi? Como assim? A Nokia tinha sido comprada pela Microsoft?!

Aquela notícia, que eu não me lembrava de ter escrito, me fez mais mal do que estar perdida no mundo. Eu podia não saber onde estava, mas tinha certeza de que aquilo não ia dar certo. Aliás, já tinha tido essa sensação antes:

“Não conheço culturas corporativas mais diferentes do que MS e Nokia”, continuava o blog. “Sem falar que a Microsoft tem o perverso talento de matar tudo o que compra. Ainda assim, continuo torcendo pela Nokia, uma das minhas empresas favoritas de todos os tempos. Espero, de coração, estar redondamente enganada na visão pessimista dessa aquisição”.

Bem, eu não estava. A compra foi um desastre. Isso, porém, a gente sabe agora — naquele dia 4 de setembro de 2013, o que eu queria saber mesmo era onde estava. Nem uma palavra sobre viagem no blog, nem uma palavra sobre viagem no Facebook. Quem me salvou foi o Instagram, onde eu havia postado uma foto do Aeroporto Internacional El Dorado, de Bogotá. Ufa!

O mais engraçado é que, assim que vi a foto, foi como se alguém religasse um interruptor na minha cabeça: de repente estava tudo lá, da correria com as malas à chegada à cidade e à agenda combinada com os meus anfitriões.

No dia seguinte, tomando café com um pequeno grupo de jornalistas, comentei o que havia acontecido comigo. Um colega do México disse que já havia passado por isso tantas vezes que chegou a procurar um médico. Perguntei qual era a causa.

— Estresse. Pura e simplesmente estresse.

Lembrei-me dessa história, de que convenientemente tinha me esquecido, porque a Nokia voltou com tudo ao noticiário. A marca pertence atualmente a uma empresa formada por antigos funcionários, e hoje começa a ser vendido, por enquanto apenas na China, o primeiro smartphone que produz depois da separação da Microsoft. Até ontem à noite, já havia mais de um milhão de encomendas do novo aparelho.

Tirando o diagnóstico por tabela do médico mexicano, nunca vou saber o que apagou a minha memória. Nunca mais tive a sensação — bastante angustiante — de não saber onde estou, mas lendo os jornais nas últimas semanas tive vontade, muitas vezes, de “desler” o que havia lido. Os massacres nos presídios, a febre amarela, o ministério do Temer, as escolhas do Crivella, todas as várias camadas de violência em que estamos mergulhados... E ainda há a posse do Trump amanhã.

É muita notícia ruim para administrar ao mesmo tempo, muito desgosto, muita falta de luz e de esperança.

Cora Rónai (Leia mais)

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