domingo, 20 de novembro de 2016

Sobre escritas imóveis

1. Logo nas primeiras páginas de “A paixão segundo G. H.” (1964) Clarice Lispector nos apresenta uma sentença iluminadora: “Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido”. A personagem em transe no quarto de empregada nos indica uma saída vitalista para o sentimento que nos abate quando as coisas parecem ter chegado a impensáveis limites. Mesmo quando a desilusão nos deixa imóveis, ainda devemos inventar mundos. Até porque sabemos que o limite nunca chegará.

2. Alguns dos pensamentos mais radicais sobre nossos impasses foram traçados na literatura. Ela, aliás, permanece entre nós em seu estágio paradoxal de afasia e exuberância. Segue seu fluxo através de gerações e classes sociais. Em uma era de youtubers, a poesia ainda come tudo e a escrita se espalha em múltiplas plataformas. Mesmo com a hegemonia da imagem, um contrafluxo da palavra se faz presente. O livro, esse objeto ainda pulsante, está em pleno vigor através de novas editoras com diferentes vocações e propostas. Para quem escreve e trabalha com a literatura, sempre parece que algo imenso está ocorrendo e, simultaneamente, que isso não faz diferença para a cidade, o país e o mundo. As duas perspectivas, talvez, estejam certas. Mesmo crescendo, parecemos imóveis.

suggestiva biblio-arca!  [Michael Lassel, Die Arche]:
Michael Lassel, Die Arche
3. Aí você abre o livro — abrir livros em qualquer parte como se você pegasse fôlego para mergulhar no meio de um mar. E aí você encontra novamente G.H. lhe explicando que “o mundo só não me amedrontaria se eu passasse a ser o mundo. Se eu for o mundo, não terei medo. Se a gente é o mundo, a gente é movida por um delicado radar que guia”. Ser mundo é ser vasto nos mínimos gestos. A literatura é um mínimo gesto nos dias de hoje?

4. Lendo a obra de Franz Kafka, Walter Benjamin chama atenção para suas passagens velozes que vão do detalhe de uma cena ao destino da Humanidade. São trechos em que o crítico sugere uma narrativa que se move por “períodos cósmicos”. Movimentos de escritas em que a literatura ganha a espessura do mundo. Nas horas em que escrevemos (ou lemos), nos tornamos outros e perdemos os medos. Ou, pelo menos, ampliamos a perspectiva dos nossos problemas.

5. Até mesmo um personagem imóvel pode mover “períodos cósmicos”? Para o escritor mexicano Mario Bellatin, sim. Em seu livro de 2011 intitulado “Cães heróis”, temos no seu longo subtítulo esse desejo de mover o mundo através do mínimo gesto: “Tratado sobre o futuro da América Latina visto através de um homem imóvel e seus trinta pastores belgas malinois”. Quase funcionando como um resumo da história, o livro traz uma trama que envolve um enfermeiro-treinador de cães, além da mãe e da irmã do homem imóvel. Em uma rotina perturbadora vivida dentro de um quarto cujas visitas diárias dos trinta pastores belgas pontuam as relações complexas com o enfermeiro e sua família, o homem imóvel grunhe sons com um gancho de telefone preso em sua cabeça. Ele traz dentro de si uma obsessão: saber quantos pastores belgas malinois cabem dentro de uma nave espacial. Pede aos outros que recortem imagens de naves e cães para colar os segundos dentro das primeiras. Liga diariamente para a Central de Informações buscando esclarecer a questão cósmica — sem nunca ser atendido.

6. O homem imóvel tem na parede de seu quarto um grande mapa da América Latina. Algumas cidades apresentam círculos misteriosos que apontam os melhores lugares para se criar pastores belgas malinois. É ali que reside o mistério sobre o futuro de sua população. Os parcos visitantes que vão ouvir o especialista em cães se instalam na frente do mapa e “são levados a pensar no futuro do continente”. A obsessão do homem imóvel com o espaço sideral, porém, nos indica que ele pode estar de fato esperando uma invasão massiva de pastores belgas malinois extraterrestres. O futuro da América Latina, talvez, seja uma população de cães treinados e homens imóveis.

7. Mas não. O narrador nos afirma que uma memória de mais de 30 anos é o que realmente mantém vivo o homem imóvel. Quando pequeno, retirado dos braços de uma mãe incapaz de cuidar dele com o devido zelo e recolhido em instituições que se dedicavam a casos raros como o seu, ele recebeu em outubro de 1967 a visita de um menino que viu seus recortes de cachorros na parede e lhe disse que escrevia relatos sobre cães heróis. Após esse encontro decisivo, o homem imóvel quis para sempre rever o escritor e, principalmente, conseguir uma máquina de escrever. Faria uma escrita imóvel? Criaria uma imobilidade que escreve? Seja como for, ele nunca obteve seu objeto de desejo.

O futuro da América Latina são homens imóveis sem poder escrever suas histórias? São seres finalmente felizes na sua desilusão? São sobreviventes que esperam naves espaciais no meio do medo do mundo? São personagens cósmicos entre cães e baratas que nos arremessam no oco dos dias?

Homens imóveis do mundo, uni-vos em livros.

Fred Coelho

Nenhum comentário:

Postar um comentário