Os que vivem numa bolha costumam ser urbanoides, vão ao cinema com certa frequência, leem vários jornais por dia para tentar entender o mundo e acreditam que a base da justiça social está em igualar a partir de baixo, da educação primária. Os “bolhinhas” são da opinião de que a TV pública precisa ter forma e conteúdo diferenciados em relação à comercial. Acham que o bom jornalismo cria cidadãos, esse jornalismo local que conhece o terreno onde pisa e bate à porta para perguntar.
Quando um sujeito como Donald Trump vence as eleições norte-americanas, os inimigos da cultura apontam jocosos para os habitantes da bolha como se fossem idiotas, inocentes, bobos. Os reacionários fazem chacota daqueles que olham o mundo com profunda preocupação; e uma certa esquerda acusa tais pessoas de viver borbulhando, com seus suplementos de jornais e seus documentários, sem sair dos seus bairros para ver como é a classe trabalhadora real. Ser um “bolha” hoje, segundo nos rotulam, é algo que precisamos manter em segredo porque a cultura começa a ser algo mal visto. Como se fizéssemos parte de uma loja maçônica.
E o fato é que, perfeitamente cândidos, vemos nesta semana, na TV pública dos EUA, um documentário sobre Rikers – uma ilha-presídio ao norte de Nova York, onde os presos são amontoados de forma preventiva, alguns deles detidos por entrar no metrô sem pagar ou por um roubo na rua, esperando que chegue o julgamento. Como suas famílias não têm dinheiro para a fiança, eles esperam, às vezes durante anos. E os que não sabiam o que era a violência, as gangues ou a droga, aprendem ali mesmo para sobreviver. Todos os que aparecem no documentário são negros ou latinos. Não surpreende, já que 37% da população carcerária nos EUA é negra, embora os afro-americanos sejam apenas 12% do total do país.
Qual é a conclusão desses pequenos burgueses que vivem na bolha urbana sobre o grande documentário? Que a questão dos negros não foi resolvida, que continua havendo racismo e segregação, que não por acaso a exclusão social atinge sobretudo as populações não brancas. Inesgotáveis em seu afã por olhar o mundo a partir de sua vida aveludada, os bolhinhas vão ao cinema para assistir a um documentário que acaba de estrear contando a vida de John Coltrane. É uma vida parecida com a de tantos negros que cresceram na segregação, mas que salva seu destino graças a um originalíssimo talento musical. Houve um momento de silêncio quase religioso na sala: quando Coltrane compõe e interpreta Alabama, honrando aquelas quatro meninas que morreram em 1963 durante um serviço religioso numa igreja de Birmingham (Alabama) por uma bomba detonada pela Ku Klux Klan, na época muito ativa. Enquanto ouvíamos a melodia, que é a expressão da dor, víamos na tela os encapuzados brancos, suas fogueiras, seus biocos recortados no azul da noite.O poder limpa até o mais repulsivo
O cinema estava lotado, uma sala grande abarrotada desses bolhas que, segundo se comenta, não querem saber do que ocorre lá fora. O eloquente silêncio continha não apenas a dor por incidentes que têm a minha idade, que ocorreram há não muito tempo; o silêncio estava lá também porque, tenho certeza, todos os espectadores são conscientes de que essa organização racista, antissemita, de supremacia branca, é hoje legal e apoiou Trump em sua campanha. Ao voltar para casa eu procurei no Google. Não fui a única. Esse nome, Ku Klux Klan, tem sido um dos mais buscados nos últimos tempos com uma pergunta: “A KKK é legal?” Como sempre ocorre, aos poucos vai tudo dando na mesma. O senhor Trump legitimará sua presidência fazendo fotos com dirigentes internacionais que encontrarão nele um pragmático, um cara simples. O poder limpa até o mais repulsivo. Mas o que eu me pergunto é: quem vive hoje na bolha? Somos nós, que procuramos desesperadamente uma explicação para essa deriva do mundo? Ou são os que alimentam seu espírito com páginas mentirosas e sectárias, que consolidam sua incapacidade de compreensão e os fazem viver temendo e abominando qualquer um que não lhe seja parecido?
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