No país em que leis são feitas para anular outras leis ou simplesmente para não serem cumpridas, é difícil ter otimismo quanto à batalha final em torno da lei anticorrupção. Até porque, no avesso da intenção, a proposta do MPF abriu possibilidades infindas para que os parlamentares adicionassem no projeto incisos de perdão para crimes cometidos. Além disso, sabe-se, de antemão, que não há garantia de que a lei vingue. Mesmo se aprovada.
Lei no Brasil nem sempre é lei. Ironicamente, há as que pegam e as que não pegam. E ninguém faz nada a respeito disso. Por exemplo: desde 1995, a lei 9.503 obriga o uso de cinto de segurança para o motorista e todos os passageiros de um veículo. Uma lei que pegou. Mas parcialmente: só vale para quem está nos bancos da frente. E não há santo que a faça viger para o assento traseiro.
Tudo que abunda não prejudica, diz o dito popular. Com as leis, vale o inverso. São tantas -- muitas delas contraditórias -- que, em vez de contribuir, não raro agem contra o cidadão.
Ninguém sabe com segurança quantas leis existem no país. Segundo o Grupo de Trabalho de Consolidação das Leis, instituído pela Câmara em 2009 -- até hoje com sua tarefa inconclusa --, o país acumula 1,7 milhão de leis. Dessas, 53 mil estariam em vigor. Levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário em 2008, quando a Constituição completou 20 anos, aponta que o país tem 3,7 milhões de normas jurídicas, uma média de 517 normas criadas por dia.
Existe lei para tudo. Há duplicidade e triplicidade de leis. Se tiver de cumprir todas elas o cidadão não se mexe. Só se mexem os que estão acima da lei.
Lei não é empecilho para quem, como o ex Lula dizia sobre o ex José Sarney, não pode ser tratado como “pessoa comum”. Ou para o próprio Lula, que não admite nem mesmo ser considerado como réu nos processos em que já foi denunciado. Para esses privilegiados, se toda a rede de proteção ameaçar falhar, tergiversa-se com a criação de novas leis em cima de leis que já existem.
É disso que se trata a punição ao abuso de poder de promotores e juízes que o presidente do Senado, Renan Calheiros, quer votar. Na verdade, legislação para tal existe há mais de 50 anos (lei 4898/65), com punições para servidores públicos de todos os níveis. Está, inclusive, sendo usada pelos advogados de Lula na queixa-crime que protocolaram no Tribunal Regional Federal contra o juiz Sérgio Moro. Prova cabal que a iniciativa de Renan não passa de tridente para espetar o MP e a Justiça, que já autorizou 12 investigações contra ele. Nada mais do que bravata cozida ao molho de ameaça.
A punição à corrupção de entes públicos também conta com um cardápio de leis claríssimas que, no máximo, poderiam ter suas punições apimentadas.
O mesmo acontece com o caixa 2 para campanhas eleitorais, como bem lembrou à época do julgamento do mensalão a ministra Cármen Lúcia, hoje presidente da Suprema Corte – “Caixa 2 é crime; caixa 2 é uma agressão à sociedade brasileira”. Agora, no bojo da discussão das 10 medidas anticorrupção, abriu-se uma brecha para o Parlamento introduzir um parágrafo, um artigo, ou uma simples alínea específica para punir a execrável prática. Uma criação perfeita para os criadores: duras penalidades para o futuro com o dom de perdoar o passado.
Enquanto os que fazem as leis buscam se proteger por meio de novas leis, a maioria que cumpre as leis convive com o Brasil sem lei, ditado pelos acima da lei.
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