A Rússia de Vladimir Putin se parece muito com o fascismo. A Turquia de Recep Tayyip Erdogan está passando rapidamente da democracia autoritária ao fascismo, e a Hungria de Viktor Orban já é uma democracia autoritária. Na Polônia, França, Holanda, Reino Unido e agora EUA devemos impedir que se ultrapasse o limite que separa a democracia liberal da autoritária. No Reino Unido, isso significa defender a independência da justiça, a soberania do Parlamento e o poder imparcial da BBC. Nos Estados Unidos, vamos presenciar o teste mais difícil para um dos sistemas democráticos de controles e equilíbrios mais sólidos e antigos. Embora os republicanos dominem o Congresso e, infelizmente, o presidente Donald Trump possa fazer nomeações políticas fundamentais no Supremo Tribunal, isso não quer dizer que sempre vá conseguir o que quer.
O que vemos em todos esses populismos nacionalistas é uma ideologia que afirma que a vontade expressa diretamente pelo “povo” vale mais que todas as demais fontes de autoridade. E o líder populista identifica a si mesmo (ou a si mesma, no caso de Marine Le Pen) como a única voz desse povo. Quando Trump diz: “Eu sou a sua voz” está usando uma típica frase populista. Igual à primeira página do The Daily Mail quando acusa de serem “inimigos do povo” os três juízes britânicos que decidiram que o Parlamento deve votar sobre o Brexit. Como o primeiro-ministro turco, quando rejeita as afirmações da UE de que, com sua brutal repressão da liberdade de imprensa, cruzou uma linha vermelha, e diz que “o povo é quem traça as linhas vermelhas”.
Quando se examina isso em detalhes, vê-se que “o povo” – Volk seria um termo mais exato – não é, na realidade, mais que uma parte do povo. Trump encarnou à perfeição essa encenação populista em uma frase espontânea pronunciada durante um comício de sua campanha. “A única coisa importante é a unificação do povo”, disse, “porque os demais não contam”. Os demais: curdos, muçulmanos, judeus, refugiados, imigrantes, negros, elites, especialistas, homossexuais, ciganos, cosmopolitas urbanistas e juízes gays e eurófilos. Nigel Farage anunciou que o Brexit era uma vitória para as pessoas normais, as pessoas decentes, as pessoas de verdade: ou seja, que os 48% que votaram nãono referendo não eram nem normais nem decentes nem de verdade.
A história nos ensina algo sobre esses fenômenos, sobre as ondas que surgem mais ou menos ao mesmo tempo em distintos lugares, em distintas variantes nacionais e regionais, mas com características comuns? O populismo nacionalista de hoje, o liberalismo globalizado (o neoliberalismo) dos anos noventa, o fascismo e o comunismo dos anos trinta e quarenta, o imperialismo do século XIX. Talvez nos ensine duas lições: que essas coisas demoram certo tempo para serem resolvidas e que, para fazer com que a onda retroceda (quando são ondas que convém fazer retroceder) é preciso coragem, empenho, consistência, o desenvolvimento de uma nova linguagem política e novas respostas políticas a problemas reais.
Um grande exemplo é a combinação da economia de mercado e o Estado de bem-estar que se desenvolveu na Europa Ocidental a partir de 1945. O modelo, que conseguiu pôr fim às ondas do comunismo e do fascismo, necessitou do gênio intelectual de John Maynard Keynes, a sabedoria de um William Beveridge e a perícia política de gente como Clement Attlee. Além de outros nomes nas diferentes versões adotadas em outros países. De qualquer modo, o desenvolvimento de um novo modelo requer tempo.
Devemos, pois, nos preparar para uma luta prolongada, talvez geracional. Não estamos ainda num mundo pósliberal, mas talvez cheguemos a estar. As forças que movem a frente popular do populismo estão em alta, muitos partidos tradicionais estão debilitados, e não se dá a volta a uma dessas ondas da noite para o dia. Para começar, temos de defender o pluralismo. Também temos de compreender as causas econômicas, sociais e culturais que fazem com que as pessoas votem nos populistas. Temos de buscar – não só a esquerda, mas também os liberais, conservadores moderados e criadores de opinião de todo tipo – uma nova linguagem que atraia, em conteúdo e emoções, esse amplo setor do eleitorado populista que não é irremediavelmente xenófobo, racista e misógino (por exemplo, tratar de não chamá-los de “miseráveis”).
Mas é evidente que a retórica por si só não basta. Quais são as políticas acertadas? São verdadeiramente os acordos de livre comércio e a imigração os que estão tirando postos de trabalho? É a tecnologia? Neste último caso, o que podemos fazer?
No plano internacional, o primeiro desafio é impedir a erosão dos elementos atuais da ordem internacional liberal, por exemplo, os acordos sobre mudança climática que foram tão custosos ou os de livre comércio. Como filosofia, é possível que o presidente chinês, Xi Jinping, dê as boas-vindas a um mundo trumpiano de Estados soberanos fortes, firmes e nacionalistas, mas, na prática, os dois dirigentes precisam estar conscientes de que a volta ao nacionalismo econômico dos anos trinta –Trump, durante a campanha, prometeu tarifas de 45% sobre os produtos importados da China – seria um desastre para todos. A única coisa boa de uma internacional de nacionalistas é que é uma contradição em si mesma.
Temos de confiar em que a política externa e econômica da nova Administração esteja em mãos de pessoas sérias e experientes, por mais repugnância moral que Trump nos cause. Chegou o momento de cobrir o nariz e a “ética da responsabilidade” de Max Weber. Ainda assim, é provável que nos encontremos diante de uma presidência grandiloquente, errática e imprevisível.
Por isso mesmo, as demais grandes democracias do mundo – todas as democracias nacionais da Europa, o Canadá, Austrália, Japão, Índia – precisam assumir uma carga muito maior. Se nós, europeus, pensamos que é vital que os Estados bálticos estejam protegidos contra qualquer possível agressão da Rússia, temos de fazer o possível, por meio da OTAN e da UE, para garantir isso. Não podemos confiar em um Trump que se dedica a elogiar Putin. Se nós, europeus, achamos que é importante que a Ucrânia continue sendo democrática e independente, teremos de nos ocupar de conseguir isso. Dado que o Reino Unido se marginalizou, como consequência de sua própria variante de populismo nacionalista, os eleitores franceses e alemães vão ter uma responsabilidade especial. Se, no final do ano que vem, tivermos na França um presidente Alain Juppé e na Alemanha uma chanceler Angelar Merkel reeleita, é possível que a Europa possa cumprir o papel designado.
A resposta mais digna que vi à eleição de Trump é, de longe, a que Merkel deu. “A Alemanha e os Estados Unidos”, disse, “estão unidos pelos valores da democracia, da liberdade e do respeito à lei e à dignidade humana, independentemente da origem, cor de pele, religião, gênero, orientação sexual ou ideias políticas. Ofereço ao próximo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, uma estreita cooperação baseada nesses valores.” Magnífico.
A expressão “líder do mundo livre” costuma ser ouvida em referência ao presidente dos Estados Unidos, e com frequência em tom irônico. Estou tentado a dizer que a líder do mundo livre, hoje, é Angela Merkel.
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