sexta-feira, 3 de junho de 2016

'A internet está nos tornando mais ignorante e narcisistas'

Todos calados. E extasiados perante o desfile do imperador. Até que um moleque se atreve a dizer o que todos veem: “Ele está nu!”. Andrew Keen se vê como aquele menino do conto de Andersen, só que 170 anos depois. E, hoje em dia, o relato é narrado ao contrário: nus estamos todos, por culpa do grande rei Internet. “É genial, eu mesmo a uso. E deixo isso claro em meia página. Entretanto, o resto do livro é dedicado aos senões…”, sorri. Ou seja, como a Rede favoreceu os monopólios, a desigualdade, o narcisismo e a vigilância, segundo o autor. São razões pelas quais, como diz o título do seu livro, The Internet Is Not the Answer (“a Internet não é a resposta”, inédito no Brasil).

É o terceiro livro que esse jornalista e escritor britânico (Hampstead, 1960) dedica ao lado sombrio da Rede, depois O Culto do Amador (ed. Zahar, 2009) eVertigem Digital (ed. Zahar, 2012). Tanto que ganhou fãs, críticos e a fama de grande polemista contra a rede mundial de computadores. E, com a mesma virulência, acusa o Vale do Silício e seus gurus (com nomes e sobrenomes) de terem se aproveitado de nós para enriquecer enquanto nos prometiam um mundo melhor, mais livre e mais democrático. Se 90% dos norte-americanos consideram que a Internet foi benéfica para a sua existência, segundo um estudo de 2014 do Centro de Pesquisas Pew, citado no próprio livro, Keen se diverte remando contra a corrente.

E com um sorriso aceita outro desafio: resumir sua tese em um minuto. “Há quatro chaves. A Internet está agravando a desigualdade entre ricos e pobres; está contribuindo em longo prazo para a crise do desemprego, com máquinas inteligentes que substituem inclusive o trabalho especializado da classe média; está criando uma economia da vigilância, onde somos o produto, transformados em dados que Google e Facebook vendem a outras companhias para fazer publicidade. E está nos tornando mais mal informados, mais ignorantes e narcisistas”. Quase nada.

Para defender essa conclusão tão polêmica, Keen emprega, ao longo de 379 páginas (50 de bibliografia), relatos, dados, entrevistas, reflexões e recapitulações históricas. “O principal desafio era fazer um livro acessível, divertido e bem argumentado. Não escrevo para acadêmicos”, observa. Assim, em um parágrafo ri do chefão da Amazon,Jeff Bezos, em outro cita um estudo da ONU segundo o qual em 2013 havia mais pessoas com celular (seis bilhões) do que com acesso a uma privada (4,5 bilhões), e num terceiro recorda a origem da Rede.


“A Internet nasceu como pesquisa acadêmica financiada com recursos públicos. Os objetivos poderiam ser resumidos em enfrentar a União Soviética e gerar um mundo melhor. Mas em 1991 começou sua comercialização”, conta Keen. E, com ela, o elenco de problemas que ele lamenta. “Se pudesse voltar atrás, iria a meados dos anos noventa, quando começou a se oferecer todo o conteúdo grátis. E a 2001, quando o Google estabeleceu o seu modelo de negócio”, acrescenta. O escritor acusa o buscador de hipocrisia: no início, se opunha à publicidade. Hoje, nos vendeu a ela.

Mas por que um cidadão deveria se queixar de serviços gratuitos e úteis como os do Google e Facebook? “O objetivo do Google, como disse o próprio Eric Schmidt [ex-diretor-executivo], é nos conhecer melhor que nós mesmos. E para isso eles têm o YouTube, o Google Maps, o Gmail, o Android, os carros sem motorista… Não se trata do Grande Irmão de 1984, de Orwell, e sim de nos vender coisas. Somos ratos trancados numa gaiola, rodeados por estas grandes companhias e por anunciantes”, diz Keen, quem também recorda as armadilhas fiscais usadas por Facebook, Apple, Google, Amazon e demais titãs 2.0.

Além de examinar esses colossos, seu livro foca também os mais de três bilhões de internautas do planeta. E as conclusões não são menos inquietantes: “Esquecemos como escutar, estamos encerrados em nós mesmos, e mais sozinhos do que nunca. A Rede expôs algumas das nossas piores características. Se não existisse, continuaríamos tendo Trump e gente insultando os muçulmanos. Mas o fato é que é a plataforma perfeita para o racismo e a misoginia, para que o ódio difunda sua metástase”. Keen considera que a Internet fracassou também em sua promessa de um iluminismo global, e que, se fosse vivo, Voltaire estaria enormemente decepcionado.

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