domingo, 24 de abril de 2016

Entre a política e a justiça

Costuma-se lembrar que, na visão aristotélica, o Judiciário cum­pre uma função política. Trata-se da tentativa de enxergar no Poder Judiciário a cota de política que Aristóteles atribuía ao homem, cujo dever é participar da vida de uma cidade, sob pena de se transformar em ser vil. Nessa tarefa, emprega os dons naturais do entendimento e do instinto para exercer funções de senhor e magistrado. Se o ensina­mento do filósofo grego fosse bem interpretado, não haveria restrição para ver na missão dos juízes uma faceta política. A questão, porém, é outra.

É comum confundir o ente político, que se põe a serviço da co­letividade, com o ator que usa a política para operar interesses escusos. Naquele habita a grandeza, neste reside a vilania. Sob essa diferença, emerge a questão: nesses tempos de Lava Jato ameaçando sujar a imagem de políticos, membros do Poder Judiciário estariam lendo de maneira enviesada o conceito aristotélico? Será que confundem Política com P maiúsculo com politicagem de p mi­núsculo? Analisemos a questão da politização sob essas duas bandas.


Vez ou outra, o Judiciário se depara com a crítica de que alguns de seus quadros entram na esfera legislativa ou inovam em matéria jurisprudencial. Os magistrados respondem: isso ocorre porque o Legislativo não cumpre de maneira plena suas funções. Como o poder não admite vácuo, a Corte o tem preenchido com sua interpretação, que acaba se transformando em lei. O STF pode entrar no terreno legislativo ou só informar às Casas congressuais sobre suas omissões? Ora, o Supremo só age quando acionado. Sua missão precí­pua é interpretar a Constituição ante a falta de clareza ou inexistência de leis que detalhem normas sobre os mais diversos assuntos de inte­resse social.

Os magistrados, de um comportamento mais cauteloso nos idos de 90, quando apenas comunicavam ao Par­lamento a falta de leis, passaram, nesses prolongados tempos de crise, a produzir regras, deixando o des­conforto de lado. Sob o empuxo de demandas da sociedade civil, capitaneadas por organizações de intermediação, o STF reposiciona-se no cenário institucional, tomando decisões de impacto – como a definição do rito do impeachment – sem se incomodar com críticas sobre invasão do território legislativo.

Quem já viu, por exemplo, vice-presidente da República ser objeto de impeachment? O ministro Marco Aurélio acha perfeitamente ser isso possível, sob a voz irônica de Gilmar Mendes, que assim devolve a questão: “o ministro Marco Aurélio está sempre nos ensinando”. O que se sabia, até então, é que vice só pode ser alvo de impeachment quando assume, em definitivo, o lugar de titular. Ocorreu em Roraima. Ottomar de Souza Pinto (governador) e Anchieta Júnior (vice) foram objeto de recurso de cassação no TSE. Ottomar faleceu, Anchieta assumiu. O vice acabou sendo inocentado e assumiu.

A fecunda verbalização que se ouve no STF não consegue dirimir a questão sobre seus limites. No final de cada peroração, sobra a impressão de que alguns ministros descem do altar onde se cul­tua o Judiciário para a liça da banalização política. Parece haver uma separação da Corte em três grupos: os ministros políticos favoráveis ao governo; os contrários ao governo e os ministros técnicos, garantistas. Comenta-se, ainda, que nas Cortes – nesse caso, trata-se de descer a outras instâncias – também existe um voto comprometido com grupos, setores e mandatários. Vejam-se as demandas trabalhistas. Diz-se que empresas governamentais sempre levam a melhor nos tribunais do Trabalho.

Se a empresa é privada, o vitorioso quase nunca é o patrão, comprovando que as decisões não contemplam os fatos. Não se enxergue, aqui, defesa de categoria social. O que se pretende demonstrar é que o maior patrimônio de um juiz é a independência. Essa é a ferramenta para ele ultrapassar a barreira da democracia formal e galgar as fronteiras da democracia substan­tiva, seara onde deve julgar, conforme a consciência, indo até contra a vontade de maiorias, defendendo direitos fundamentais, não se curvando às pressões midiáticas nem à correntes de opinião.

Infeliz­mente, estruturas do Judiciário e parcelas do Ministério Pú­blico, cujo escopo é o de defesa da sociedade, cultuam o espelho de Narciso, inebriando-se ante os holofotes da mídia. Como diria Rui Barbosa, “a ninguém importa mais que à magistratura fugir do medo, esquivar humilhações e não conhecer covardia”. Não se pretende, aqui, defender a tese de que juiz precisa ves­tir o figurino da neutralidade. Juízes insípidos, inodoros e insossos tendem a ser os piores. O que a sociedade quer é voltar a ver no Judiciário as virtudes que se enxergam na ação do juiz Sérgio Moro: independência, saber jurídico, honestidade, coragem e capacidade de enxergar o ideal coletivo.

Por que estes valores têm sido tão fragmentados? Primeiro, por causa da ingerência do Executivo sobre o Judiciário. Ingerência que se liga ao patrocínio de nomeações. A mão que nomeou um magistrado parece permanecer suspensa sobre a cabeça do escolhido, gerando retribuição. Mesmo sabendo que houve evolução nessa dependência, suspeita-se que haja ainda uma troca de gentilezas. O jurista Paulo Bonavides escreveu: “A Suprema Corte correrá breve o risco de se transformar em cartório do Poder Executivo”. Noutras instâncias, as promoções na carreira costumam passar por cima de critérios de qualidade. Uma liturgia de herança de poder se instala, com muita docilidade junto às cúpulas dos tribunais. Milhares de juízes padecem de condições técni­cas para exercer com dignidade as funções. O nivelamento por baixo ocorre na esteira da massificação de cursos de Direito e juvenili­zação dos quadros. Os concursos já não se regram por padrões de excelência.

Sob o estigma da politização e do despreparo de milhares de qua­dros, caminha o Poder Judiciário. Têmis, a deusa, tem uma venda nos olhos para representar a Justiça que, cega, concede a cada um o que é seu, sem olhar para o litigante. No Brasil, é generalizada a impressão de que, vez ou outra, a deusa afasta a venda para dar uma espiada na clientela.

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