domingo, 20 de março de 2016

Ver sem ser visto

O mais grave proibido inscrito nas nossas consciências não nos impede de romper tabus. O que está na nossa ordem dia fala do roubar em nome do povo como uma crença religiosa

É uma das delícias da vida, embora seja repleta de significado e perigo. Mas quem, vivo e ocupante físico de um espaço, não gostaria de virar invisível e, como um espectador de cinema, ver o mundo sem que o mundo saiba que está sendo visto e, eis o barato, sem descobrir quem os observa?

Quem vê sem ser visto trama sem ser descoberto, rouba pensando que o seu rabo não ficou de fora, pensa que pode ser Deus. Não é apenas uma questão de poder se isso ou aquilo de mandar enfiar “naquele lugar” o processo. Não! É imaginar-se como o nosso Deus. Eu sei tudo, eu posso tudo e eu estou em todo lugar.

Se, na evolução humana, passamos, como se dizia em tempos antigos, do ouvido e da fala para o olhar, que se tornou o mais importante dos chamados cinco sentidos. O voyeurismo com o seu charme de mistério e perversão em francês sempre foi e hoje é, mais do que nunca, o nosso modo principal de falar do mundo.


A frase “você viu o que eu vi!” tem substituído de modo avassalador a antiga questão com a qual eu, velho professor, repetidamente questionava meus alunos: “Vocês estão me ouvindo?”. Porque naquele tempo, o “ouvir” significava mais do que escutar. Ele dizia respeito ao “compreender”, ao assimilar, ao memorizar e ou obedecer e seguir. E assim produzia o confronto permanente entre isso e aquilo. Entre a norma ouvida que estabelecia o não e a curiosidade ou a má-fé de fazer o contrário.

Noto, de passagem, pois a crônica é uma porta giratória, que não há na nossa cabeça coisas definitivamente “proibidas”. Pois tudo pode ser imaginado, até mesmo o não imaginado. O mais grave proibido inscrito nas nossas consciências não nos impede de romper tabus. O que está na nossa ordem dia fala do roubar em nome do povo como uma crença religiosa.

Para nós, humanos — seres sem o comando imperativo e inescapável dos chamados instintos (um camelo nasce e morre camelo), as normas de conduta explícitas, como os mandamentos e as leis —, incluindo aí as regras da boa educação e das belas maneiras à mesa — tudo pode ser ultrapassado, esquecido ou violado em nome de alguma outra causa ou investimentos.

Não é, pois, por acaso, por burrice ou ignorância que os apaixonados atuem com mais convicção do que os possuídos por orixás. Os que se convenceram que pegaram alguma coisa pela raiz — os “radicais” — têm uma aura especial que consiste precisamente na mais absoluta ausência de dúvida. Ora, se o humano, o demasiadamente humano, consiste em subtrair a certeza, quem vive com certeza impressiona tanto ou mais do que Hitler. O tal “encanto radical” consiste exatamente nesse narcisismo capaz de tudo compartimentalizar e de tudo juntar a favor de uma causa que seria a “raiz” ou o centro de todo bem. E quem sabe do bem, sabe ainda muito mais do mal.

Nada, pois, mais satisfatório o não ser visto, não ter feito, não ter dito tendo evidentemente visto, feito e dito. O ato de se esconder corresponde a uma terceira posição. Freud chama-a de negação. Nos filmes de Chaplin e nas noveletas que são hoje o tesouro literário do Brasil, elas consistem no personagem que vê, ouve ou faz de um lugar fora do ação, mas dentro da cena. Aquele que vê sem ser visto é personagem que, oculto pela semiaberta, descobre que é pai do seu próprio irmão, pois — como Édipo ou o Papa Gregório da Pedra —, para ficarmos com dois casos impressionantes e comoventes, é esse “escondido” que representa o segredo. E o segredo é o tabu que não pode ser punido pela lei dos juristas, pois ele não consegue distinguir o certo e o errado ou legal e o ilegal. Ultrapassando essas fronteiras do mero legislar humano, o tabu aponta o erro que os gregos explicavam como “destino” ou tragédia. Como o que deveria a todo custo ser evitado, mas que foi plena e absolutamente realizado com o concurso da inocência dos seus perpretadores. O que, sou obrigado a terminar, nos faz duvidar da inocência como um estado primordial on final da existência humana. Como ser humano sem simultaneamente se conhecer como inocente e pervertido mas se reconhecer separando pela honra e pela vergonha um lado do outro?

Nessa linha tivemos “herança maldita” e “imprensa golpista”. Agora, neste domingo nublado pela natureza mas ensolarado pela esperança de um Brasil honrado, será que quem não quer ver, vai enxergar um “povo golpista”?

Roberto DaMatta 

Nenhum comentário:

Postar um comentário