Entre os viventes do “Grande Rio”, arrastão é nome de pescaria e também de uma trepidação social tida como criminosa mas que, como tudo o que ocorre diante dos nossos olhos sempre cegos para o presente, é uma sequela de um modo de vida.
Aliás, tal estilo é parte do viés estadomaníaco, estadofilíaco e estadofóbico da nossa concepção de país. Numa idealização do Estado e do governo cuja função capital seria a de ser o agente “civilizador” de práticas sociais tidas como atrasadas, bem como um erradicador de todos os nossos problemas e questões, sem interferir na estrutura social. O Estado e os seus governos mudariam tudo o que achamos ruim, deixando, porém, o conjunto de hábitos firmados no patriarcalismo-escravocrata intocados. Nada temos a ver com a desigualdade vergonhosa que nos aprisiona, pois a sua erradicação seria tarefa exclusiva do Estado que, por acaso, inventamos.
O Estado deve comandar a sociedade, mas o perigo brota quando a sociedade manifesta-se na “rua”, fazendo arruaça. Agora é a “rua” falando impertinentemente contra a “casa” — quebrando muros e arrombando portas — querendo tomar o lugar do governo.
As chamadas “manifestações” nada mais são do que “arrastões” sociopolíticos. São discursos opostos ao que admitimos como falas “educadas”. Seja contra o governo ou contra um estilo de administrar a riqueza coletiva, desviando-a de seus fins em nome da “política” e dos canalhas; e seja também e, acima de tudo, contra uma desigualdade social que chega ao pornográfico.
O arrastão é, como disse Gilberto Freyre, um brasileirismo. Como o jogo do bicho, a sacanagem, o rouba mas faz e o “ir à praia” — algo singular e ambíguo. É uma inversão violenta do carnaval mas próxima da carnavalização. Neste sentido, o arrastão é uma desabusada manifestação de igualdade, de impessoalidade e de anonimato fora do seu lugar apropriado: a “rua”, com os seus patifes e donos usuais. O arrastão não acontece na praça nem do tal comício igualitário, mas com palanque. Não se trata de uma manifestação com hora marcada, bandeiras e discursos dos messias para o “povo bom”.
Como seu nome indica, o evento ocorre subitamente na praia. Nessa praia cujo mar domesticado vira piscina e onde os “peixes” a serem apresados na rede somos nós, e não os gatunos costumeiros que estão nas paginas dos jornais! Como é que pode o povo atacar a si mesmo e a nós, o grupo privilegiado e dominante que se recusa a se assumir como tal e sempre põe a sua reprimida culpa num outro lugar. Na formação do país, no governo que criticamos porque nomeia outras pessoas, rouba com outra gangue mas — note bem! — que sempre nos representou de forma adequada por meio de uma polícia que prende quem sai do seu lugar.
Então, na praia gloriosa e englobada pela celebrização em mídia, verso e música — quem não gostaria de comer um “peixão” ou namorar a garota de Ipanema? Num espaço de lazer aberto e radicalmente igualitário, onde todo mundo está seminu; neste local livre de muros, exceto os do mar-piscina e do paredão de classe na forma dos edifícios de luxo nos quais moramos e frequentamos, eis que surgem os agentes ocultos da nossa inconsciente opressão na forma de um bando de meninos que desconhecem o seu lugar e vêm “tirar as nossas coisas” como se estivessem num jogo e na TV.
Somos igualitários-aristocráticos de modo que não enxergamos a miséria que engendramos como resultante de uma secular repressão econômica modulada por um clientelismo afetuoso. Muito pelo contrário, vemos a nós mesmos como democratas amigos e compadres dos pobres... Desde que — é claro! — o Estado faça a sua parte.
Tal como nossos avós davam alforria a alguns dos seus escravos que viravam pessoas, nós temos amigos negros e pobres e, no nosso conforto, somos insensíveis a sua miséria e opressão. Mudar cabe ao Estado, a nós cabe clamar pela repressão quando esses pobres tomam nossos colares, pulseiras, relógios e celulares num extrarrotineiro arrastão.
Acolhemos o protesto, mas não aceitamos a “violência”. Enquanto isso, não vemos nos governos que financiamos e elegemos; e nas ideologias que nos sustentam, a incompetência e a indiferença costumeira por um estilo de vida desmesuradamente desigual, mas enfeitado pelos rapapés nostálgicos do “você sabe com quem está falando?”
O arrastão é um desses “você sabe com quem está falando" que a aguda crise do sistema moral brasileiro desmascara. Afinal de contas, vamos continuar pensando que a vida é mesmo uma novela que pode ser desligada, ou é algo seriíssimo (mesmo porque não há outra) para ser consertada e mudada nas suas iniquidades? Não seria o arrastão um alerta para uma desfaçatez que está nos liquidando?
Roberto DaMatta
Nenhum comentário:
Postar um comentário