domingo, 31 de maio de 2015

Conserva sem educação

Parece que, entre nós, a ignorância não é um desserviço público, um pecado social
Cinco séculos antes de Cristo viveu Sócrates. Que tinha um amigo. Que resolveu ir ao templo de Apolo em Delfos e perguntar quem era o mais sábio dos gregos. Apolo não pensou duas vezes: era Sócrates. E isso criou um problema descomunal. Pois Sócrates, oleiro de ofício, sabia uma coisa só: que não sabia nada. Era um ignorante. E um ignorante não pode ser sábio, muito menos o mais sábio. O deus tinha se enganado. Mas o deus não se engana. Por isso é deus. E Sócrates, o ignorante, levou o resto da vida procurando a sabedoria que não tinha, para não o desmentir.


Dessa tensão entre ignorância e sabedoria forjou-se para nós, até hoje, a necessidade da educação como gênero de primeira necessidade. Como o pão. O grande discípulo de Sócrates, Platão, fundou a Academia. E Aristóteles, aluno de Platão, criou o Liceu. E de então em diante estar na escola tem sido a condição para gestar o conhecimento e pô-lo em comum, a mais elevada missão dos descendentes dos antigos gregos. Na luminosa Idade Média criaram-se as universidades, onde os cristãos reuniram o saber vindo dos gregos e a sabedoria migrada da Judeia, em cujas escolas os jovens, aos pares para estimular a divergência e o equilíbrio, aprendiam a Lei. Das universidades nós somos os descendentes diretos. Elas, onde o estudo conduz à superação da ignorância, são a mais nobre atividade emancipatória que criamos no Ocidente greco-judaico-cristão. Até hoje. As grandes universidades do mundo dão testemunho dessa continuidade histórica.

Aqui, não. Durante o período colonial as universidades foram proibidas no Brasil. No Império houve faculdades no Recife, em São Paulo, no Rio. Mas a primeira universidade foi criada apenas em 1920, a Universidade do Brasil, atual UFRJ. Temos, como país incorporado à cultura ocidental, 515 anos. Nossa mais antiga universidade não chega a 100. Diz alguma coisa? Infelizmente diz. Fala do desapreço dos governos pela escola, de baixo ao alto, do fundamental ao doutorado. Estudar, no Brasil, é heroico. Os pais humildes que querem para seus filhos vida melhor do que a que vão levando sempre acertam no remédio: “Meus filhos vão ter estudo”. Os pais “de posses” encaminham naturalmente seus filhos na mesma direção. E aí começa a tragédia. Porque os filhos dos pobres estudam nas escolas públicas, que já foram ótimas e se tornaram ruins. Professoras e professores equilibram-se nelas com estímulo perto de zero. E os filhos dos não pobres frequentam as escolas particulares, algumas muito caras, que são em geral boas. Isso não seria mais do que a expressão da estrutura social perversa em que vivemos não fosse o fato de que depois de 12 anos de estudos os filhos dos pobres vão para as universidades particulares, que não são boas — exceção para as PUCs e poucas mais —, e os filhos dos não pobres entram nas universidades públicas, que são melhores. Os filhos dos pobres não ficam, ou se endividam para estudar. Porque, justamente, são pobres, e as universidades particulares são caras. Xeque-mate. Há programas paliativos, mas de fato vamos criando um abismo entre os que sabem e os que não. Parece que, entre nós, a ignorância não é um desserviço público, um pecado social. Convivemos bem com ela.


Não que nós, a sociedade, não tenhamos consciência de que alguma coisa vai muito mal e não pode ficar assim. Mas assistimos, apatetados, como se não pudéssemos fazer nada. Nem, pelo menos, votar certo. E vemos que mesmo as universidades públicas têm sido levadas a tratar seus alunos como objetos de simples adestramento para o “mercado”, essa entidade misteriosa. O sentido emancipatório e crítico da educação vai desaparecendo. É só olhar para as humanidades, cada vez mais minguadas, sem prioridade orçamentária. Deviam ser bibliotecas cercadas de estudantes por todos os lados. Não são. Onde há bibliotecas, são magras. Têm horário de repartição pública. Não funcionam nos fins de semana. Onde não há parece que é assim mesmo, não é um horror.

Agora foram cortados R$ 70 bilhões do orçamento da educação. A pátria educadora ficou R$ 70 bilhões mais pobre. Já tinha pouco. Havia, na esquerda, a esperança de que agora essa prioridade saísse do papel das propagandas dos governos. Não saiu.

Sócrates foi condenado à morte pela cidade de Atenas porque inquietava as consciências. A ignorância que procura a sabedoria desequilibra privilégios, é subversiva. Se vivesse no Brasil de hoje podia ficar tranquilo. Não dariam por ele. Mas vem uma greve dos professores aí. Se o tivessem aceito como mestre numa universidade (ele não publicou nada...), talvez devesse parar agora para reclamar do descaso criminoso. Sair da Ágora onde ensinava, deixar seus alunos. O que é, para um professor, também uma forma de morte. Dói menos do que o veneno que teve de tomar. Mas dói.

Marcio Tavares D’amaral 

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