O Brasil está sem assunto. O governo nos surripiou, entre outras coisas, o “assunto”. Tirando a tragédia da água que pode nos secar, estamos condenados a comentar apenas essa crise política e institucional que vivemos. Descobrimos, de boca aberta, a falência múltipla dos órgãos públicos. O Brasil está sendo destruído diante de nós e não podemos fazer nada. Os petistas no poder roubaram os melhores conceitos de uma verdadeira esquerda que pensa o Brasil dentro do mundo atual e se obstinam em usurpar um genuíno progressismo em nome de uma “verdade” deformada que instituíram. Quem quiser alguma positividade é “traidor neoliberal”, termo muito usado pelos “mestres” militantes que doutrinam milhares de jovens nas universidades.
A academia cultiva a “desigualdade” como uma flor. A miséria tem de ser mantida “in vitro” para justificar teorias velhas e absolver incompetência. Orgulham-se de um maniqueísmo esquemático, como se a verdade morasse no mais raso reducionismo. O capitalismo explica tudo e é tratado como uma pessoa: “Ih... Parece que hoje o capitalismo acordou de mau humor” ou “esse capitalismo é mesmo cruel e incorrigível – não para de explorar os pobres”.
O filósofo João Pereira Coutinho disse outro dia, na “Folha”, uma frase ótima: “Oprimido e opressor não esgotam as relações humanas possíveis, mesmo as desiguais. A luta de classes é uma escolha política, não um dado natural” – na mosca. Somos tecnicamente uma “democracia”, que, aliás, é vivida como porta aberta para o oportunismo: “Ah, na democracia tudo pode, é mais fácil roubar numa boa”. Achávamos a corrupção uma exceção, um pecado, mas hoje vemos que o PT transformou a corrupção em uma forma de gestão, em um instrumento de trabalho. Várias vezes citei uma frase do Baudrillard que explica a esquerda radical e repito-a: “O comunismo hoje desintegrado tornou-se viral, capaz de contaminar o mundo inteiro, não por meio da ideologia nem do seu modelo de funcionamento, mas por seu modelo de ‘desfuncionamento’ e da desestruturação da sociedade” – vide o novo eixo do mal da América Latina.
Essa zona geral do país começou com o nefasto Lula (o grande culpado de tudo), que teve a esperteza de transformar nossa anomalia secular em projeto de governo. Essa foi a realização mais profunda de seu governo: a adesão sem pudor do patrimonialismo burguês e o desenho de um novo e “peronista” patrimonialismo de Estado. Essa gente desmoralizou o escândalo, a indignação e a ética (essa palavra burguesa e antiga para eles). A maior realização desse governo foi a desmontagem da razão.
Não é sublime tudo isso?
Nunca antes em nossa história alianças tão espúrias tiveram o condão de nos ensinar tanto. A cada dia, nos tornamos mais desesperados porém mais sábios, mais cultos sobre essa grande chácara de oligarquias. Em nome da esperança, talvez tudo que ocorre hoje nos ensine muito. Estamos progredindo, pois estamos vendo melhor a secular engrenagem latrinária que funciona nos esgotos da pátria. Há qualquer coisa de novo nesta imundície. A verdade está nos intestinos.
A verdade está sempre no avesso do que dizem. São hábeis em criar um labirinto de desmentidos, protelações e enigmas que vão desqualificando as investigações de coisas como a Petrobras e todos os crimes de seus aliados. E a mentira vai se acumulando como estrume durante anos e acaba convencendo muitos ingênuos de que “sempre foi assim” ou de que “erraram com boa intenção”.
Não só roubaram cerca de R$ 10 bilhões (até agora) desviados da Petrobras e de outros aparelhos do Estado, mas roubaram também nossos mais generosos sentimentos – não arredaram os pés dos velhos dogmas da era stalinista, como, aliás, os antigos comunas fizeram desde que se recusaram a votar nos sociais-democratas alemães, fazendo Hitler subir ao poder. Já em 1924, Stálin chegou a afirmar: “O fascismo e a social-democracia não são inimigos, mas irmãos gêmeos”. A verdade é que os petistas nunca acreditaram na “democracia burguesa” – se orgulham de fingir-se de democratas para apodrecer a democracia por dentro. Um professor emérito da USP “se entregou” e disse: “Democracia é papo para enrolar o povo”. Se bem que o “povo” nem sabe o que é isso e prefere mesmo um autoritarismo populista. Um país de analfabetos sempre espera um salvador da pátria. Estamos prontos para ditadores e demagogos; para administradores e reformadores racionais, não. Enquanto isso, intelectuais sonham com um socialismo imaginário, pois têm medo de ser chamados de reacionários ou caretas. Continuam ativos os três tipos exemplares de “radicais”: os radicais de cervejaria, os radicais de enfermaria e os radicais de estrebaria. Os frívolos, os loucos e os burros. Uns bebem e falam em revolução; outros alucinam e os terceiros zurram. Que cenário maldito...
A “presidenta” está pagando pelo erro de querer ser socialista-brizolista e dirigir um país... ah... capitalista. Ignorou Davos na reunião da cúpula da economia e foi à Bolívia se vestir de inca na posse do Morales. Dilma perdeu o controle da zona geral que Lula sabia “desorganizar” com esmero e competência. Dilma não é competente nem para desorganizar. Não é apenas o fim de dois maus governos; é o despertar de um caos institucional que será mais grave do que pensávamos. Estamos diante de um momento histórico gravíssimo, com a união dos dois tumores gêmeos de nossa doença: a direita do atraso e a esquerda do atraso. Como escreveu Bobbio, se há uma coisa que une esquerda e direita é o ódio à democracia.
Arnaldo Jabor
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