Nada parecido com os clássicos golpes do passado, com tanques e fardados armados nas ruas, modelito que não compõe o figurino dos autocratas do século 21. Diligentemente, eles minam as estruturas do Estado, lançam dúvidas sobre a seriedade e até a idoneidade delas, espalham mentiras convenientes para se manter no poder. Um receituário que Bolsonaro tem seguido com fervoroso afinco desde o início de seu mandato.
Em seus primeiros movimentos, adulou militares de alta e média patentes com regalias, soldos generosos e cargos. A presença militar em cargos civis no governo Bolsonaro supera 6 mil homens, quase 3 mil deles comissionados – 18,3% dos cargos de livre indicação do governo federal, de acordo com relatório de 2021 do Tribunal de Contas da União.
Ao mesmo tempo, nomeou gente sem gabarito ou mal intencionada para ministérios como Educação, Saúde e Meio-ambiente, e em cargos de chefia de organizações que primavam pelo rigor técnico. Interveio na Polícia Federal e no Coaf – transferido de endereço quando as investigações do Conselho chegaram perto de seus rebentos -, no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, no Ibama, nas agências reguladoras… Avançou célere e obstinadamente na destruição do Estado.
Não bastasse, conseguiu ampliar – e muito – a posse de armas entre civis. No último triênio, o número de registros triplicou em relação ao período de 2016 a 2018, chegando a 460 mil novas armas contra 141 mil. Levantamentos do Sistema Nacional de Armas (Sinarm) e do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma) apontam mais de 1,2 milhão de armas nas mãos de cidadãos comuns e dos chamados CACs (caçador, atirador esportivo e colecionador), número duas vezes maior do que as 583 mil armas das polícias militares de todo o país.
A junção dessas “forças” tem sido frequentemente utilizada por Bolsonaro que, não raro, inclui no mesmo discurso a desconfiança nas urnas eletrônicas, o suposto apoio que tem dos militares e o “orgulho” de ter destravado e multiplicado a venda de armas e munições. Tripé que ele embala na falácia da “defesa da liberdade”,
O trato negligente e afrontoso com a pandemia, quando desdenhou de mortos e doentes, também auxiliou no golpe em andamento. Permitiu que Bolsonaro jogasse a culpa de seu desgoverno, em especial no que tange à economia – um desastre completo -, na ação dos governadores e prefeitos que fecharam parcialmente cidades em busca de proteger a população.
Também não pairam dúvidas de que no 7 de setembro, quando ameaçou ministros do Supremo, Bolsonaro riscou a linha no chão. O recuo proposto pelo ex Michel Temer, autor da carta de paz ao STF, foi apenas tático. Menos de uma semana depois, as baterias do presidente voltavam a apontar para o ministro Alexandre de Moraes e as urnas eletrônicas.
Recentemente, desafiou a Corte com o perdão concedido ao deputado Daniel Silveira, um dia após o pleno condená-lo à prisão por 9 x 1. Agora, subiu mais tijolos no emparedamento à Justiça ao anunciar que fará auditoria privada das eleições.
A ideia da auditoria soou como improvável até para aliados. Mas se tratando de Bolsonaro, que lança tempestades no quintal alheio enquanto se abriga no conforto do cargo e na impunidade comprada junto ao Centrão e à Procuradoria-Geral da República, o absurdo pode ganhar tons de normalidade. A auditoria provavelmente não ocorrerá, mas só a hipótese de realizá-la garante o tumulto institucional pretendido pelo presidente.
Mais uma etapa do golpe em curso, que se acelera sob as vistas do Congresso Nacional, cuja maioria só tem olhos para as barganhas eleitorais, da PGR e sua lassidão, e das cortes superiores da Justiça – STF e TSE -, isoladas no combate às insanidades do presidente.
Para Bolsonaro, o “estado de golpe” tem absoluta serventia. Amedronta e abre espaço para o próximo estágio.
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