quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Sherlock no Brasil de Bolsonaro

Não há nada pior do que assistir a uma conspiração contra instituições. Ver as molduras que organizam a vida ser atacadas. Quando Shakespeare diz que o mundo é um palco, e todos somos atores, revela o elo entre o todo (o roteiro como instituição) e a parte (a encenação como sua manifestação).

Encenar é interpretar. Nossas falas não seriam entendidas se não falássemos todos a língua portuguesa. Para que o drama se cumpra, ele tem de existir antes dos atores que o encenam e dos espectadores capazes de “deduzir” de suas cenas o significado que nele se encerra.

Somos simultaneamente demarcadores e demarcados por molduras e nos assustamos quando elas são rompidas. Imagine um juiz arrotando depois de uma sentença; um senador arrumando a dentadura numa CPI; ou um presidente ameaçando dar porrada em jornalistas...

Molduras revelam níveis de realidade. Indicam o que é e o que não é. O que você deduz quando, em Chicago, vê uma cena de perseguição policial? Perplexo, você exige uma moldura para assentar o que testemunhou. Foi um assalto? Não, diz alguém o acalmando, é o Brian De Palma refilmando “Os intocáveis”.

A resposta, roubada de um livro do sociólogo Erving Goffman, satisfaz seu senso de realidade. A expressão “é sério” faz parte de um mundo infiltrado por brincadeiras, mentiras, trotes e fake news de todos os tipos de moldura.

O golpe pode ser lido como uma moldura implantada numa hora de indecisão. O que hoje amedronta é a confusão de molduras promovendo insuportáveis inseguranças. Quando sentenças e operações contra uma corrupção abusiva são neutralizadas, e poderosos são inocentados, cria-se um paradoxo porque foi justamente sua exposição que elegeu o “supremo mandatário da nação”, que hoje atua numa clara desconstrução institucional da República.


O que se pode deduzir quando o Poder Executivo — esse poder desempenhado por um único ator, que, por isso mesmo, tem muito mais potência e, consequentemente, uma implacável responsabilidade numa sociedade familística e populista — produz imprecisão e insegurança?

A expressão “esticar a corda” é óbvia. Mas o que fazer quando o cabo de guerra é parte do discurso de um presidente leniente com seus aliados (e filhos) e implacável com seus adversários, que toma como inimigos mortais? Um presidente que quer demitir ministros do STF e assustar o Congresso Nacional no dia de uma votação contrária a um dos seus projetos mais retrógrados — mudar a forma de votação? Um presidente que nega vacinas e, assim, recusa a ordem biológica que é a moldura da vida no planeta?

Testemunhamos um claro projeto de destruir a interdependência clássica dos três Poderes constitutivos da República, com a intenção de reduzi-los ao Executivo. O que fazer com um presidente cuja rotina objetiva é destruir molduras e recusar a realidade, como faz prova a sabotagem-negociata das vacinas, ao lado do descumprimento das promessas que o elegeram?

Bolsonaro realiza o contrário do que prometeu. Ele é um presidente embaralhador. Para seus seguidores, é o “mito” redentor de um Brasil cuja história política vive de personagens salvacionistas, “fortes” e “novos”, esses sinalizadores de decepcionantes molduras de progresso e de regressões intoleráveis.

Enquanto, pois, tentamos deduzir o sentido de tantas irracionalidades, está em curso uma nova moldura personalista agressiva, para a qual não há resposta dentro da nossa moldura de cordialidade e jeitinho.

Jair Messias Bolsonaro é um caso de dedução eleitoral equivocada. Eleito com a promessa de ordenar e domesticar o familismo, o fanatismo ideológico e a corrupção, ele realiza o justo oposto, com o ônus de a isso adicionar uma tenaz desconstrução. O que deduzir disso tudo?

Somos pródigos em tomar — ou deduzir — gato por lebre.

Uma anedota ilustra o que passamos.

Sherlock Holmes e o Dr. Watson estavam acampando. Armaram a barraca sob as estrelas e foram dormir.

No meio da noite, Holmes acordou e disse:

— Watson, olhe para as estrelas e me diga o que está vendo.

— Estou vendo milhares e milhares de estrelas.

Holmes perguntou:

— E o que você deduz disso?

Watson respondeu:

— Ora, se existem muitos milhares de estrelas e se, em torno delas, existirem planetas, é provável que alguns sejam como a Terra. E, se houver outros como a Terra, é possível também que haja vida.

Holmes então disse:

— Watson, seu idiota, isso quer dizer que alguém roubou nossa barraca!

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