Claro que isso não viria na forma de um reconhecimento lúcido e de uma tentativa de reverter o imenso estrago. Bolsonaro ainda preferiu oferecer ao Brasil mais cenas vexaminosas de fracasso e inépcia com a excursão tabajara de seu exército Brancaleone a Israel para (não) conhecer a produção de um spray experimental que foi testado em poucas dezenas de pessoas e não é prioridade nem em Israel.
O problema com a intervenção no PNI é que ela não é garantia de que avançaremos na nossa precária e insuficiente cobertura vacinal contra a covid-19. Estamos apenas transferindo o bode da sala: tirando-o do Planalto e instalando-o no Congresso e nas empresas. Pode até ser um refresco para Bolsonaro e Eduardo Pazuello.
Desde janeiro a conversa da compra de vacinas por empresas vem e vai, como forma de tentar tapar o buraco deixado por Bolsonaro. Nas primeiras especulações se esbarrou em alguns problemas: 1) as farmacêuticas só estavam fechando acordos com governos e coalizões internacionais como o consórcio Covax; 2) não havia doses disponíveis nem para atender a demanda de países, quanto mais para esquemas pouco transparentes com empresas que faziam lobby junto ao governo federal; 3) não estava claro na legislação brasileira se isso seria possível, e como; 4) empresas gostariam de ficar com uma parte dos lotes de vacinas que adquirissem para vacinar seus funcionários fora do PNI.
Na semana passada o Congresso entrou para fazer a coordenação na qual o governo Bolsonaro falhou completamente. Aprovou uma lei que estabelece as regras para que não só as empresas, mas também Estados e municípios possam comprar vacinas, como já havia permitido o STF. Todas as doses adquiridas por empresas têm de ser doadas ao SUS até que estejam vacinados os grupos prioritários. Mesmo depois de encerrada esta fase, metade precisará ser doada ao SUS, e a outra metade não pode ser comercializada.
Trata-se de uma capitulação inédita: nunca antes neste país um governo precisou de muleta da iniciativa privada numa campanha nacional de vacinação. Não há precedente de tamanho fracasso. Clínicas e empresas até vendem vacinas, mas aquelas do calendário regular de vacinas, não as de campanhas para erradicação de doenças, como é o caso da covid-19.
O problema com a entrada do Congresso e das empresas para cobrir a incompetência de Bolsonaro e Pazuello é que será mais uma situação em que o presidente brasileiro tentará se desvencilhar de sua responsabilidade. Daqui para a frente, poderá dizer que queria coordenar a vacinação, mas não deixaram e agora a responsabilidade não é dele.
Se, ao contrário, a cobertura vacinal acelerar para além dos menos de 4% hoje imunizados com ao menos uma dose (o ciclo completo de duas doses não atinge nem 2% dos brasileiros), ele tentará surfar na onda e capitalizar o sucesso dizendo que sempre defendeu a parceria com a iniciativa privada, mas o Congresso é que não o deixava agir antes.
Além da certeza de que vem aí mais narrativa mentirosa do presidente, na prática a intervenção no PNI não garante que mudemos de patamar: as farmacêuticas têm demonstrado pouca disposição a negociar com municípios ou empresas, graças à preocupação jurídica para que não sejam responsabilizadas mundo afora em caso de efeitos adversos das vacinas -- elas têm pressionado por compromissos feitos diretamente com governos nacionais.
A dispersão dos esforços para adquirir vacinas também ameaça a equidade da vacinação pelo território nacional e pode agravar a desigualdade entre Estados ricos e pobres. E como o governo federal jogou a toalha de vez, é meio inútil esperar que atue ao menos para mitigar mais esse efeito colateral de sua inoperância.
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